domingo, 2 de agosto de 2020

DIREITO DE PREFERÊNCIA DO ARRENDATÁRIO HABITACIONAL RECUSADO POR RAZÕES QUE A RAZÃO DESCONHECE



ACÓRDÃO N.º 299/2020
Processo n.º 984/2018
Plenário
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro
I – Relatório
1. Um grupo de trinta e seis deputados à Assembleia da República, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 e na alínea f) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, pediu a apreciação e declaração da inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro. 
2. O artigo do Código Civil que contém a norma questionada tem o seguinte teor:
Artigo 1091.º
Regra geral
1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º
4 - A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º é expedida por carta registada com aviso de receção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da receção.
5 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes.
6 - No caso de venda de coisa juntamente com outras, nos termos do artigo 417.º, o obrigado indica na comunicação o preço que é atribuído ao locado bem como os demais valores atribuídos aos imóveis vendidos em conjunto.
7 - Quando seja aplicável o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 417.º, a comunicação referida no número anterior deve incluir a demonstração da existência de prejuízo apreciável, não podendo ser invocada a mera contratualização da não redução do negócio como fundamento para esse prejuízo.
8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:
a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;
b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;
c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.
9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade. 

3. Para impugnar a constitucionalidade da norma acima indicada, os requerentes invocam a violação do artigo 62.º, n.ºs 1 e 2, conjugado com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.

Começando por analisar o procedimento legislativo que conduziu à produção da Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, os requerentes alinham um conjunto de considerações gerais sobre o sentido e alcance daquela norma:

«Em 27 de abril de 2018, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda deu entrada ao Projeto de Lei n.º 848/XIII-3ª (“Altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, para aprimoramento do exercício do direito de preferência pelos arrendatários (septuagésima quarta alteração do DL 47344/66 de 25 de novembro”), discutido na generalidade em 4 de maio de 2018. Esta iniciativa viria a baixar sem votação à Comissão do Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação, por requerimento aprovado em 5 de maio de 2018.

Em reunião de 12 de julho de 2018, a referida Comissão procedeu a nova apreciação da iniciativa em evidência, tendo procedido à votação indiciária do texto originário e das propostas de alteração apresentadas por vários partidos. Dessa votação resultou um texto de substituição, elaborado pela Comissão, em benefício do qual o Bloco de Esquerda retirou a sua iniciativa.

O texto de substituição da Comissão foi aprovado – com votos a favor do Bloco de Esquerda, do Partido Socialista, do Partido Comunista Português, do Partido Ecologista “Os Verdes” e do Partido Pessoas, Animais e Natureza, e os votos contra do Partido Social Democrata e do Partido Popular CDS-PP – em votação na generalidade, na especialidade e final global, e viria a dar origem ao Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII, enviado para promulgação de sua Excia. o Presidente da República em 1 de agosto de 2018.

O Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII foi devolvido por Sua Excia. o Presidente da República, nos termos do veto que acompanhou essa devolução, lido em Plenário em 6 de setembro de 2018.

A reapreciação do Decreto ocorreu em 21 de setembro de 2018, tendo sido discutidas e votadas as propostas de alteração apresentadas por vários partidos. A votação do texto final do decreto, com as propostas de alteração entretanto aprovadas, ocorreu na mesma data.

A 2.ª versão do Decreto da Assembleia da República (Decreto n.º 248/XIII) foi enviada para promulgação em 12 de outubro de 2018, tendo sido promulgado nessa mesma data.

A promulgação do Decreto deu origem à Lei n.º 64/2018, publicada no Diário da República, I Série, n.º 208, de 29 de outubro, que “Garante o exercício do direito de preferência pelos arrendatários (altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966”.

Da mensagem de Sua Excia. o Presidente da República, que acompanhou o veto do Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII, cumpre destacar os seguintes trechos:

“Contra o diploma militam duas razões de fundo:

A primeira é a de, estando anunciado, ainda para esta legislatura, uma reponderação global do regime do arrendamento urbano, se estar a avançar, com medidas pontuais, casuísticas, não inseridas naquela reponderação. Isto, sendo certo que já foi promulgada e entrou em vigor a lei suspendendo o despejo de inquilinos habitacionais em situações de mais fragilidade.

A segunda – é a de, querendo proteger-se a situação dos presentes inquilinos, poder estar a criar-se problemas a potenciais inquilinos, ou seja ao mercado de arrendamento no futuro, visto que se convida os proprietários de imóveis, designadamente os não constituídos em propriedade horizontal, a querer tê-los sem inquilinos, ou só com alojamento local, para os poderem vender mais facilmente, sem a desvalorização que uma ação de divisão de coisa comum em tribunal, anterior à constituição de propriedade horizontal, pode acarretar.

(…)

Medindo contras de peso e prós, que o não são menos, ainda assim, o Presidente da República entende que o diploma justifica duas clarificações por parte da Assembleia da República.

A primeira é sobre os critérios de avaliação da parte locada do imóvel não constituído em propriedade horizontal. Como o direito de preferência é exercido antes da ação de divisão de coisa comum ou de constituição de propriedade horizontal, em cujo título se especificaria o mencionado valor, pelo menos em termos de permilagem, conviria, porventura, esclarecer os critérios de determinação desse valor, matéria que desapareceu do texto no decurso do processo legislativo. E não se diga que o n.º 6 do artigo 1091.º resolve essa questão, pois respeita à venda de todo o imóvel em conjunto com outros. Esse esclarecimento pouparia eventuais efeitos negativos em termos de litigiosidade judicial.

A segunda clarificação, mais importante, prende-se com o facto de, na sua versão submetida a promulgação, o diploma parecer aplicar-se quer ao arrendamento para habitação, quer ao arrendamento para outros fins, designadamente comerciais e industriais.

Ora, a proteção do direito à habitação, justificação cimeira do novo regime legal, tem cabimento no caso de o arrendamento ser para tal uso, mas não se for para uso empresarial”. 

As alterações ao Código Civil são do seguinte teor, conforme quadro abaixo:

(…)

Comparando a redação do art.º 1091.º do Código Civil que constava do Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII, com aquela que foi a redação final da lei, podemos concluir que as preocupações de Sua Excia. o Presidente da República foram, de alguma forma, acauteladas: a nova norma já se refere apenas ao direito de preferência dos arrendatários habitacionais, além de prever que o valor do locado, para efeitos do exercício do direito de preferência, tenha em conta o valor proporcional dessa quota-parte, expressa em permilagem do valor total da transmissão». 

Seguidamente, os requerentes enunciam os fundamentos que, em seu entender, justificam um juízo positivo de inconstitucionalidade sobre a norma indicada no pedido: 

«Da violação da garantia fundamental da propriedade privada.

A primeira desconformidade constitucional que cumpre assinalar diz respeito à limitação da liberdade contratual das partes e, bem assim, à faculdade de poder dispor livremente da sua propriedade.

Obviamente que os requerentes não contestam que o direito de propriedade constitucionalmente consagrado não constitui um direito absoluto, estando, pelo contrário, sujeito a várias restrições (incluindo, naturalmente, o direito de preferência).

Todavia, e desde logo, não se pode perder de vista que o princípio continua a ser o de que a propriedade privada é um espaço de autonomia pessoal, um instrumento para a realização de projetos de vida que não podem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas.

Além disso, e sobretudo neste caso, o sacrifício que se impõe ao proprietário de prédio não constituído em propriedade horizontal é desproporcionado. Isto porque, dizem a experiência e o bom senso, as mais das vezes, o projeto de compra diz respeito à totalidade do prédio que, amputado de uma “fração”, perderá o interesse para o comprador. O que impedirá o vendedor – e senhorio – de transmitir a sua propriedade.

Se a lei restringisse o direito de preferência às hipóteses em que o senhorio pretende apenas vender a quota-parte do prédio correspondente ao locado, o problema não se colocaria. A verdade, porém, é que o texto da lei não opera tal restrição, antes pelo contrário: a lei permite que o exercício do direito de preferência pelo inquilino seja restrito à quota-parte do prédio correspondente à fração não autónoma arrendada, o que – está bem de ver – deixa o senhorio com o resto do imóvel nos braços sempre que – como acontece frequentemente – o comprador apenas esteja interessado na totalidade do imóvel.

No fundo, neste caso, o direito de preferência não constitui apenas uma limitação à liberdade de escolha da contraparte: ele afeta a própria liberdade de contratar. Na prática, com a nova solução legal, os proprietários de prédio não constituído em propriedade horizontal podem ficar impedidos de vender todo o prédio de que são legítimos titulares.

Uma das dimensões do direito de propriedade consiste no direito de não se ser privado da propriedade nem do seu uso – ou seja, e na prática, referimo-nos a um direito a não ser arbitrariamente privado da propriedade, e a ser indemnizado em caso de desapropriação. E, se é verdade que a CRP prevê várias figuras de desapropriação forçada por ato de autoridade pública, não o é menos que, no caso de formas de privação da propriedade a favor de terceiros (e não de fins públicos), a falta de explícita credencial constitucional tem levantado dificuldades constitucionais a algumas figuras correntes do direito civil (v.g., a acessão, a usucapião, o direito de preferência) que implicam transmissão forçada do direito de propriedade. Colhem aqui particular relevo conformador, então, determinados princípios do regime da restrição de direitos liberdades e garantias, como sejam os da proporcionalidade, adequação e justiça (no caso, da contrapartida da alienação).

Numa palavra, a solução que aqui se contesta consagra uma restrição desproporcionada do direito de propriedade, afetando de forma desproporcional, ou mesmo aniquilando, a liberdade de transmissão privada inter vivos.

Da violação do direito a justa indemnização

A segunda desconformidade constitucional diz respeito à justa indemnização.

De acordo com a nova lei, o valor da “fração” é determinado em função da permilagem.

A verdade, porém, é que há outros fatores que devem ser tomados em conta para o cálculo do justo valor da preferência.

Com efeito, a área de uma fração de um prédio está muito longe de ser o único critério de avaliação de um imóvel: fatores como o nível de conservação, as vistas, o grau de luminosidade natural ou a própria disposição das divisões no interior do fogo locado ditam variações do valor do mesmo – o próprio piso em que a fração se situa (v.g. cave, rés-do-chão ou último andar) é fundamental para a determinação do valor justo.

Ora, o artigo 62.º, n.º 2, da CRP só autoriza o sacrifício do direito de propriedade mediante o pagamento de uma justa indemnização.

Esta regra não vale apenas para as expropriações por utilidade pública, aplicando-se igualmente às restrições impostas por interesse particular.

Se é pacífico que o sacrifício da expropriação por utilidade pública implica, necessariamente, o pagamento de indemnização justa, não seria compreensível que a desapropriação que não se funda, sequer, em fim coletivo e de interesse público, mas antes em interesse privado – ainda que tutelado constitucionalmente – não tivesse por contrapartida um valor fixado de forma objetiva e justa.

Ou seja, o preço fixado para o exercício do direito de preferência tem de refletir o valor real da “fração”, devendo o inquilino pagar o preço que é justo, com todos os seus ónus e encargos, mas também com todas as suas valias e diferenças.

Nestes termos, consideram os signatários que o direito de preferência dos arrendatários habitacionais, tal como vem configurado no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, com a redação da Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, não constitui apenas uma limitação à liberdade de escolha da contraparte, afetando mesmo a própria liberdade de cotratar e impedindo os senhorios, desse modo, de venderem todo o prédio de que são legítimos titulares. Nestes termos, têm potencial para violar a garantia fundamental da propriedade privada, prevista no artigo 62.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Consideram igualmente os requerentes que a redação da disposição atrás referida, ao restringir o critério de determinação do valor justo ao fator “área da fração” – ignorando fatores como o nível de conservação, as vistas, o grau de luminosidade natural, a disposição das divisões no interior do fogo locado ou o fator correspondente ao próprio piso em que a fração se situa – violam igualmente o direito a justa indemnização prevista no artigo 62.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa». 

4. Notificada, ao abrigo do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro – LTC), para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, a Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos, enviando ainda uma nota técnica, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação, relativa aos trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação da Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro. 

5. Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e tendo este sido submetido a debate, nos termos do n.º 2 do referido preceito, cumpre decidir de acordo com a orientação que o Tribunal fixou.  

II – Fundamentação 

6. A Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, veio dar nova redação ao artigo 1091.º do Código Civil, com propósito de garantir «o exercício efetivo do direito de preferência pelos arrendatários na alienação do locado». Além de proceder a modificações pontuais no direito de preferência consagrado nesse artigo, criou um regime especial de preferência no contrato de arrendamento para fins habitacionais, relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, através do aditamento dos novos números 8 e 9. O objetivo principal foi proteger o arrendatário habitacional de unidade física individualizada, mas não constituída em propriedade horizontal, contra inconvenientes resultantes da alienação da totalidade do prédio, fazendo desse modo incidir o direito de preferência sobre objeto que não coincide com os limites físicos do local arrendado.

Não foi, porém, esse diploma que introduziu no ordenamento jurídico português o direito de preferência do arrendatário urbano. O direito de preferência do arrendatário teve origem no início do século XX e sofreu ao longo do tempo mutações derivadas da evolução legislativa do instituto e dos vários contextos sociais e económicos que condicionaram o edifício normativo em que aparece integrado.

Sob a designação de “direito de opção” na venda de prédio urbano, teve a sua primeira consagração legal na Lei n.º 1662, de 4 de setembro de 1924, relativamente ao arrendatário comercial e industrial, independentemente do tempo de duração do arrendamento (artigo 11.º). Com a Lei n.º 2030, de 22 de junho de 1948 – que procedeu à reforma do arrendamento urbano -, o direito de preferência foi alargado ao arrendatário para o exercício de profissão liberal, passando a abranger a dação em cumprimento e a ser limitado aos arrendatários com mais de um ano de contrato (artigo 66.º). Essa solução passou para a versão inicial do Código Civil de 1966, que manteve o direito de preferência do arrendatário urbano em termos semelhantes aos previstos na Lei n.º 2030 (artigos 1117.º e 1119.º).

Com a Constituição de 1976, a Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, estendeu o direito de preferência ao arrendatário habitacional, aplicando-lhe o regime previsto no Código Civil para o arrendatário não habitacional, sem fazer depender a preferência de um prazo mínimo de permanência no locado, e consagrando, também pela primeira vez, o direito de preferência na alienação de frações autónomas de prédios constituídos em propriedade horizontal (artigo 1.º, n.ºs 1 e 2).

O Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/1990, de 15 de outubro, revogou os artigos 1117.º e 1119.º do Código Civil e a Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, e unificou nos mesmos preceitos o direito de preferência do arrendatário habitacional e não habitacional (artigos 47.º a 49.º). O direito de preferência, sem qualquer tipo de discriminação quanto ao fim do contrato, passou a ser concedido ao arrendatário de “prédio urbano ou de sua fração autónoma” que permanecesse no “local arrendado” há mais de um ano, com exclusão dos contratos de duração limitada, e no caso de pluralidade de arrendatários com direito de preferência, estabeleceu licitação entre eles (artigo 47.º).

O RAU foi substituído pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que tornou a colocar o regime substantivo do arrendamento urbano no Código Civil, prevendo o direito de preferência do arrendatário urbano no artigo 1091.º, mas com redação diferente do seu antecessor: não se refere ao sujeito da preferência como o arrendatário de prédio ou fração autónoma, passando apenas a referir a venda ou dação em cumprimento do “local arrendado”; elevou de um para três anos o prazo mínimo de permanência como arrendatário; passou a abranger também os arrendamentos com prazo certo; e não acolheu a solução, que anteriormente se encontrava no n.º 2 do artigo 47.º da RAU, de mandar abrir licitação na hipótese de serem dois ou mais preferentes. 

Finalmente, a Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro – cujos preceitos integram a norma questionada no presente processo – deu nova redação ao artigo 1091.º, com destaque para as seguintes alterações: (i) o período mínimo de duração do arrendamento foi reduzido para dois anos (alínea a) do n.º 1); (ii) exigência de forma escrita para a comunicação da preferência ao arrendatário (n.ºs 4 e 7); (iii) alargamento para 30 dias do prazo para a declaração de preferência (n.º 4); (iv) densificação do conteúdo da comunicação para preferência na venda de coisas conjuntamente com outras (n.ºs 6 e 7); (v) e extensão do objeto de preferência a prédios não constituídos em propriedade horizontal (n.ºs 8 e 9).  

7. Como é sabido, o direito de preferência legal – derivado diretamente da lei –, por vezes chamado “direito de prelação”, “direito de preempção” ou “direito de opção”, confere a certa pessoa a possibilidade de, em certas situações, adquirir uma coisa no caso do seu proprietário a pretender alienar e o preferente se dispuser a pagar a importância que um terceiro oferecer. Portanto, a essência do direito de preferência está na circunstância de se «atribui[r] ao respetivo titular prioridade ou primazia na celebração de determinado negócio jurídico, desde que ele manifeste vontade de o realizar nas mesmas condições (tanto por tanto) que foram acordadas entre o sujeito vinculado à preferência e um terceiro» (Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, Almedina, 1990, pág. 189).

Pode dizer-se que os direitos legais de preferência são expressivos de certa forma de economia e explicativos das conceções jurídico-políticas vigentes em cada momento histórico, mostrando os verdadeiros estigmas da sociedade que favorece o seu aparecimento. Com efeito, a preferência legal começou por ser um meio de proteção de certos grupos, como a família, impedindo a intromissão de elementos estranhos, de modo a manter a unidade do património familiar. Com o trânsito para uma economia de mercado, que valoriza a livre circulação de bens e que associa a apropriação individual ao princípio da liberdade de concorrência, a preferência de origem legal surge como instrumento de eliminação de conflitos entre direitos reais, permitindo recompor a propriedade desonerada sem sacrifício da paz social. E com a crescente intervenção estadual na vida económica e social, em que a propriedade passou a desempenhar uma “função social”, a preferência legal começou a servir interesses públicos distintos do simples direito de propriedade, como a empresa, trabalho, habitação, etc.

No ordenamento jurídico português podemos encontrar direitos legais de preferência que prosseguem qualquer uma destas finalidades: (i) o direito de preferência legal de formação processual – a remissão (artigo 842.º do CPC) -, destinado a proteger a família do executado; (ii) o direito de preferência dos comproprietários, dos co-herdeiros, dos proprietários do solo, de prédios onerados com servidão legal de passagem ou de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura (artigos 1409.º, 2130.º, 1535.º, 1555.º e 1380.º do Código Civil), destinado a extinguir situações não consentâneas com uma exploração económica mais racional dos bens; (iii) o direito de preferência do arrendatário urbano, com finalidade comercial, industrial, profissão liberal ou habitacional, e do arrendatário rural (artigos 1091.º do Código Civil e 31.º do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro), destinado a proteger as organizações produtivas, a estabilidade da habitação e o trabalho rural.

No âmbito do arrendamento de prédios urbanos, o direito de preferência surge enquadrado num conjunto de medidas restritivas da liberdade contratual destinadas a proteger os arrendatários dos efeitos negativos do carácter temporário da locação. A intervenção estadual neste domínio, em resposta aos problemas económicos e sociais subsequentes à primeira guerra mundial, iniciou-se com medidas legislativas que impuseram a renovação obrigatória do arrendamento urbano em favor do arrendatário e restrições ao direito de denúncia do senhorio e à liberdade de se convencionar aumentos de rendas acima de determinados montantes. Foi no contexto desse regime protetor dos “arrendamentos vinculísticos”, que compreendia como característica fundamental “a prorrogação legal automática do contrato”, que o direito de preferência do arrendatário foi reconhecido, pela primeira vez, pelo artigo 11.º da Lei n.º 1662, de 4 de setembro de 1924.

Assim, a primeira justificação para a consagração legal do direito de ser preferido na venda do local arrendado para fins comerciais ou industriais começou por se encontrar dentro da índole geral do direito de preferência: extinguir ónus ou restrições que prejudicam o melhor aproveitamento do imóvel arrendado. Nos trabalhos preparatórios daquela lei considera-se que a “situação do prédio arrendado para um estabelecimento comercial ou industrial é muito semelhante à de uma propriedade imperfeita”, pois, não obstante não haver fracionamento do domínio, a imposição da renovação do contrato, a não extinção do vínculo por morte de qualquer das partes e a admissibilidade do trespasse, “tudo parece afinal, como se existisse um fracionamento perpétuo do direito de propriedade”, que se pretende extinguir com a preferência (José Carlos Brandão Proença, “Para uma leitura restritiva da norma (artigo 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in, Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, pág. 942). É ainda em defesa da propriedade, mas agora na perspetiva da função social, que Pinto Loureiro fundamenta o direito de preferência do arrendatário: tornar livre a propriedade «de situações embaraçosas, desvalorizadoras das coisas e geradoras de demandas, como as resultantes de arrendamentos comerciais e industriais», casos onde «não só a propriedade produzirá melhor e mais completamente desempenhará a função social que lhe comete, mas se evitarão litígios e desavenças» (Manual dos Direitos de Preferência, Livraria Morais, 1944, Vol. I, pág. 7).

Modernamente, a atribuição ao arrendatário do direito de preferência justifica-se pelo interesse social das atividades prosseguidas no local arrendado, as quais implicam estabilidade e continuidade da exploração comercial ou industrial ou da profissão liberal no prédio arrendado, tutelando, além do interesse económico do arrendatário, outros interesses, como a preservação de postos de trabalho, dos clientes ou utentes dos estabelecimentos e das atividades instaladas no local arrendado. Como refere Agostinho Cardoso Guedes, «aqui, desvaloriza-se a propriedade do senhorio em detrimento de um outro valor: a proteção da atividade produtiva ou comercial – a proteção da empresa, numa palavra» (O Exercício do Direito de Preferência, Porto, Publicações Universidade Católica, 2006, pág. 73).

Já o direito de preferência do arrendatário habitacional foi, desde logo, fundamentado no interesse público de favorecer o direito à habitação, enquanto direito social reconhecido e consagrado constitucionalmente. Com efeito, no breve preâmbulo da Lei n.º 63/77, de 25 de agosto, justifica-se o novo direito enquanto expressão do direito fundamental à habitação: «No domínio dos direitos e deveres sociais, dispõe a Constituição da República que ao Estado compete, além do mais, adotar uma política de acesso à habitação própria (art. 65.º, n.º 2). Poderá contribuir para a referida política, ainda que em grau reduzido, conferir aos arrendatários habitacionais direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento dos imóveis respetivos». Tratou-se, pois, de medida de política habitacional com o interesse subjacente de favorecer o direito à habitação: um meio de “proporcionar o acesso à propriedade a quem está (ou esteve) a fruir os bens ao abrigo de um direito pessoal de gozo tendencialmente duradouro” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 389). 

Assim, a preferência do arrendatário habitacional constitui um dos instrumentos que o legislador encontrou para concretizar, no plano ordinário, o objetivo constitucional de facilitar o acesso à habitação própria, assumindo aqui relevo prioritário o interesse da estabilidade na habitação. A promoção da estabilidade na ocupação do locado constitui, entre outras finalidades de índole económica e de fomento de uma exploração eficiente dos bens, a ratio subjacente ao direito de preferência consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil. O alcance deste direito é, essencialmente, o de conferir ao arrendatário oportunidade de aceder, definitivamente, ao nível máximo de segurança do gozo do imóvel, adquirindo a plena propriedade, em antecipação a um terceiro. Através do direito de preferência o arrendatário tem acesso imediato à propriedade do imóvel e, dessa forma, ganha a estabilidade que nunca teria se continuasse a gozar o locado por força do vínculo de base contratual. Como diz Manuel Januário da Costa Gomes - relativamente ao artigo 47.º, n.º 1, do RAU, mas em termos transponíveis para a norma hoje constante do Código Civil - «A razão de ser do preceito é clara: o legislador presume que o contacto e a familiaridade do arrendatário com o local tomado de arrendamento, independentemente do seu fim – mas com mais relevo nos arrendamentos para habitação e para comércio, indústria e exercício de profissão liberal – quando feito por mais de um ano, lhe cria raízes no lugar, o que legitima que, querendo o senhorio vendê-lo ou dá-lo em cumprimento a terceiro, pesando a posição do terceiro com a do arrendatário, esta lhe mereça proteção, na medida em que, através do exercício da preferência se torna proprietário do local que já ocupa, deixando as vestes, mais precárias, de arrendatário» (“Cessão da Posição do Arrendatário e Direito de Preferência do Senhorio”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. III, Coimbra, Almedina, 2002, pág. 509).

A Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, – que estendeu o objeto da preferência aos prédios não constituídos em propriedade horizontal – também visa proteger o acesso à propriedade a quem frui parte do prédio ao abrigo de um contrato de arrendamento parcial. O direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil visa possibilitar o acesso do arrendatário habitacional à propriedade do local arrendado, pretendendo garantir desse modo maior estabilidade na habitação, objetivo que esteve na base da consagração legal do direito de preferência do arrendatário habitacional.

Com efeito, na origem daquela Lei está o Projeto de Lei n.º 848/XIII/3.ª, em cuja exposição de motivos expressamente se nomeia a proteção do direito à habitação do inquilino como constituindo a finalidade das medidas propostas: «[O] direito à habitação e à estabilidade na ocupação de determinado locado pode ser colocado em causa, quando se trata da transação ou do fim do contrato de arrendamento do respetivo fogo e não é assegurado pela lei em vigor o pleno exercício do direito de preferência.[…]. Sempre se poderia apelar ao exercício do direito de preferência pelos inquilinos, tal como previsto no artigo 1091.º do Código Civil. Sucede que este regime encontra dificuldades de aplicação, em particular quando ligado a grandes transações, seja por poder tratar-se de prédios que não se encontrem em regime de propriedade horizontal, sendo alienados no seu todo e sem hipótese do exercício do direito de preferência, seja pelo facto de a venda poder abranger diversas frações autónomas e de ter tal direito de ser exercido no seu conjunto. Em tais situações, ficam os inquilinos privados da possibilidade do exercício do direito de preferência, havendo que adequar o quadro legislativo à possibilidade real do exercício de tal direito, acrescentando-se ainda prazos mais dilatados para o efeito».

O reconhecimento do direito de preferência a quem efetivamente habita no prédio objeto de transmissão onerosa cumpre também o objetivo de conferir proteção contra a perda da habitação decorrente da especulação imobiliária. A referida exposição de motivos não deixa de sublinhar esse desiderato ao referir que o «caso mais recente relativo à anunciada intenção de alienação de património imobiliário arrendado, por parte de várias entidades financeiras, tornou evidente esta potencial inacessibilidade ao direito de preferência, por parte de centenas de inquilinos que foram confrontados com a venda das casas onde residem, nalguns casos com a oposição à renovação do contrato de arrendamento. A alienação de milhares de fogos em curto espaço de tempo por parte de entidades financeiras, com o objetivo de obter rapidamente receitas, inscreve-se nos movimentos especulativos que o mercado imobiliário tem vindo a estar sujeito por pressão do crescimento do turismo, das aquisições a valores elevados pelos residentes não habituais e dos vistos gold, da desregulação do alojamento local e da liberalização do regime de arrendamento».

E na verdade, o direito de preferência pode ser instrumento impeditivo de movimentos especulativos. A existência de prédios urbanos não sujeitos ao regime de propriedade horizontal, realidade que tem alguma expressão nos núcleos históricos das cidades, não impede que o arrendamento tenha por objeto apenas uma parte do prédio. Porém, a circunstância do locado não ter qualquer autonomia jurídica, sendo antes visto como parte integrante do prédio em questão, leva a que não haja coincidência entre o objeto de arrendamento – a parte do prédio indivisa – e o objeto do direito de propriedade que é possível adquirir através do exercício do direito de preferência. De modo que a impossibilidade jurídica de adquirir a parte arrendada é suscetível de vulnerar a posição do arrendatário, expondo-o às eventualidades referidas na exposição de motivos, com o consequente perigo da perda da habitação. Por isso, pode considerar-se que o direito de preferência, além de promover a estabilidade na habitação, constitui ainda um meio de “lutar contra o despovoamento do centro das cidades, evitando que os proprietários ou os promotores imobiliários pressionem os locatários de recurso modestos ou de idade avançada a abandonarem os prédios” (Agostinho Cardoso Guedes, ob. cit., pág. 74). 

8. O n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil estabelece que no caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais, relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência em termos idênticos ao do arrendatário de fração autónoma, com as seguintes condições: (i) o direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; (ii) a aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.

O âmbito aplicativo da preferência atribuída por este preceito é formado por arrendamentos parciais destinados a fins habitacionais: os arrendamentos devem ter por objeto parte delimitada de determinado imóvel juridicamente não autonomizada; e devem destinar-se à habitação do arrendatário. Trata-se de um direito legal de preferência que se distancia da solução constante da alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo 1091.º, que abrange arrendamentos destinados a diferentes finalidades – habitacionais ou não habitacionais -, e exclui do seu âmbito os arrendamentos parciais.

O decreto que inicialmente resultou da iniciativa legislativa que esteve na base da Lei n.º 64/2018 – Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII – previa a aplicação do regime especial de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º aos arrendamentos para outros fins, designadamente comerciais e industriais. Porém, foi objeto de veto político do Presidente da República, com alerta de que «a proteção do direito à habitação, justificação cimeira do novo regime legal, tem cabimento no caso de o arrendamento ser para tal uso, mas não se for para uso empresarial». Na sequência do veto, foi então aprovada a Lei n.º 64/2018, que introduziu no artigo 1091.º do Código Civil a norma que limita expressamente a sua aplicação aos casos de arrendamento para fins habitacionais, confirmando assim que a ratio da medida se prende com a proteção do interesse do arrendatário em manter o gozo do imóvel destinado à sua habitação.

Não obstante a preferência incidir sobre prédio não constituído em propriedade horizontal, diz a lei que o arrendatário tem direito de preferência «nos mesmos termos» previstos para o arrendatário de fração autónoma. A identidade que a fórmula legal denota, no que se refere aos pressupostos do direito de preferência, tem por alvo a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091º: «na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos». Os “mesmos termos” traduz, assim, identidade quanto ao tipo de contrato objeto de preferência – compra e venda e dação em pagamento – e quanto ao requisito temporal – mais de dois anos de arrendatário.

Mas também se questiona se a identidade dos dois tipos de preferência - a do arrendatário de fração autónoma e a do arrendatário de parte de prédio indiviso – não traduz a exigência de que o prédio onde se situa o «local arrendado» reúna, de forma cumulativa, todos os requisitos impostos no artigo 1415.º do Código Civil e nas leis administrativas para poder ser constituído em propriedade horizontal. Na verdade, se a ratio da preferência se prende com a proteção do acesso à habitação própria, a circunstância de o prédio se encontrar em condições de ser juridicamente autonomizado, ou seja, composto por unidades independentes e isoladas entre si, com saída própria para parte comum do prédio ou para a via pública, é fator determinativo da forma como o arrendatário pode adquirir a propriedade plena da habitação através do exercício do direito de preferência. É que, se o local arrendado não for passível de individualização jurídica, sobre ele não pode incidir jus in re (artigo 408.º, n.º 2, do Código Civil), uma vez que só após a constituição da propriedade horizontal (que não existe enquanto não houver apartamento) é que o arrendatário pode tornar-se proprietário exclusivo do local arrendado.    

Os dois direitos de preferência têm em comum, é certo, o tipo de contrato por eles abrangido, o requisito temporal da relação de preferência e a individualização física dos prédios objeto do contrato. Todavia, essas semelhanças não prejudicam as diferenças substanciais que existem quanto ao objeto da preferência e quanto ao direito a adquirir pelo arrendatário preferente. O direito de preferência previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º é atribuído ao arrendatário «sem prejuízo do previsto nos números seguintes». Só que os números seguintes, designadamente os n.ºs 8 e 9, contêm normas específicas que põem em causa a qualificação da prioridade do arrendatário como verdadeiro direito de preferência.

Com efeito, no caso de alienação de prédio não constituído em propriedade horizontal que esteja parcialmente arrendado, o objeto da venda deixa de ser a totalidade do imóvel arrendado para passar a ser uma quota-parte do mesmo. Assim, a alteração do objeto da venda, imposta pela norma da alínea a) do n.º 8 do artigo 1091.º, implica que o arrendatário não pode adquirir através da preferência a propriedade do local arrendado, mas apenas uma parte alíquota do imóvel. Diferentemente do que ocorre na preferência do arrendatário de fração autónoma, em que se adquire a propriedade plena do local arrendado, na preferência do arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal constitui-se uma compropriedade sobre o imóvel. Em rigor, o alcance do direito de preferência previsto naquela norma não é o de conferir ao arrendatário um meio para aceder, de imediato, à propriedade plena do local arrendado, mas apenas a atribuição ao arrendatário habitacional de um direito à constituição de compropriedade sobre o imóvel.

Como é visível, a conversão legal do objeto da preferência, que deixa de ser o imóvel para passar a ser uma parte alíquota do mesmo, põe em causa a exigência de que a prioridade do direito do preferente seja estabelecida em estrita igualdade de condições. Se o proprietário decidir vender a totalidade do prédio não constituído em propriedade horizontal, a preferência do arrendatário não é exercida em paridade com as condições oferecidas por terceiro, já que o objeto dos contratos em concurso é sempre diferente: num caso, a totalidade do prédio; no outro, uma parte alíquota do mesmo. Neste caso, o contrato objeto da preferência não é economicamente idêntico ao contrato celebrado entre o vinculado à preferência e o terceiro. E assim sendo, não se pode dizer que a prioridade do arrendatário na celebração do contrato que certo terceiro celebrou com o proprietário ocorre em paridade com as condições que esse terceiro está disposto a aceitar.

A preferência traduz-se sempre numa prioridade atribuída ao titular do respetivo direito na celebração de determinado contrato. Mas a generalidade da doutrina defende que o direito de preferência só pode ser exercido se o preferente se dispuser a igualar as condições propostas por terceiro. Como refere Agostinho Cardoso Guedes, «apesar do aparente silêncio da lei, a “paridade de condições” é, de facto, um elemento essencial da preferência tal como esta resulta dos art.ºs 414.º e seguintes do Código Civil. A razão pela qual o legislador omitiu a referência à locução “em igualdade de condições” foi, muito simplesmente, por entender desnecessária face à nossa tradição jurídica e à unanimidade da doutrina a esse respeito – face a um tão grande consenso, mencionar o uso da expressão “em igualdade de condições” seria até pleonástico» (ob. cit., pág. 99).

Ora, a preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil envolve um sentido de prioridade, sem o requisito da paridade de condições. A singularidade deste regime resulta da impossibilidade jurídica do “local arrendado” constituir objeto do contrato projetado. Como se referiu, a parte arrendada de prédio não constituído em propriedade horizontal não pode ser alienada por falta de autonomia jurídica. O bem que pode ser objeto de venda ou dação em cumprimento ou é o prédio na totalidade ou uma parte alíquota da propriedade do mesmo. Por isso, a preferência do arrendatário só poderia ser exercida “tanto por tanto”, em paridade de condições, se o direito de preferir abrangesse a alienação a terceiro do imóvel na sua totalidade ou uma quota-ideal do mesmo. Nesses casos, o preferente poderia aceder à propriedade singular ou comum do imóvel em igualdade de condições com as oferecidas por terceiro.

 Porém, o direito de preferir previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil refere-se à venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio não constituído em propriedade horizontal, mas o direito a adquirir pelo arrendatário restringe-se a uma quota-parte ideal. Ou seja, a lei pré-determina o contrato objeto da preferência em dois elementos essenciais: (i) o bem que pode ser objeto do contrato, que consiste numa quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado; (ii) e o respetivo valor, que corresponde ao valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão. Prevê-se, assim, um “direito de preferência” sui generis, cujo exercício é desligado das condições ajustadas com terceiro e que se traduz na aquisição de um direito de compropriedade, caso ocorra a alienação do prédio parcialmente arrendado. De modo que o direito de preferência não foi aqui tomado no seu significado técnico-jurídico, referido a dois direitos opostos ou inconciliáveis referentes à transmissão da mesma coisa, a exercer em paridade de condições, mas sim no sentido de prioridade, referida a dois direitos diferentes, a exercer em absoluta disparidade de condições.   

9. Para além disso, o direito de compropriedade atribuído no n.º 8 do artigo 1091.º ao arrendatário habitacional de parte de prédio não sujeito a propriedade horizontal não encontra correspondência no regime de compropriedade previsto nos artigos 1403.º a 1413.º do Código Civil. Com efeito, a alínea b) daquele número determina que a aquisição da quota-parte ideal confere ao preferente o uso exclusivo da parte do prédio correspondente ao locado, quando os comproprietários não têm “posse exclusiva” de parte especificada da coisa comum.

A natureza jurídica da compropriedade é explicada através de várias teorias: (i) vários direitos idênticos sobre quotas-partes da coisa idealmente considerada; (ii) um único direito fracionado em quotas homogéneas, cabendo a cada consorte não uma quota ideal da coisa, mas uma quota ideal do direito; (iii) um direito de cada consorte sobre toda a coisa, limitado no seu exercício pelos direitos idênticos dos outros consortes: (iv) um único direito sobre a totalidade do objeto, direito que se encabeça na coletividade dos contitulares ou num sujeito novo (pessoa jurídica), constituído por esses mesmos consortes (Mota Pinto, Direitos Reais, Almedina, 1976, págs. 254 e ss.).

Porém, seja qual for a conceção que se possa ter no plano doutrinal ou qual a solução indicada pelos preceitos do Código Civil reguladores do instituto da compropriedade, certo é que nenhum dos consortes tem o domínio exclusivo sobre todo ou parte especificada do imóvel, pois cada um deles é apenas titular de uma quota ideal que não se confunde abstratamente com as quotas ideais dos outros. Os comproprietários têm igual direito de utilização da coisa comum, não atribuindo o uso da coisa comum posse exclusiva a nenhum deles (artigo 1406.º, n.ºs 1 e 2). Em princípio, é a quota-parte ideal que exprime a medida de participação do comproprietário no objeto de domínio (artigo 1403.º, n.º 2). O interesse do consorte em fruir a coisa comum e dela dispor, quando precise, está sempre limitado pela respetiva quota-parte. Não obstante o exercício «em conjunto» dos poderes de administração da totalidade da coisa (1405.º, n.º 1) ou a intervenção coletiva de todos os contitulares para disposição ou oneração de parte especificada (1408.º, n.º 1), justificados pela indeterminação da quota-parte, a utilização do prédio que dá segurança económica ao consorte restringe-se à medida da quota: é na proporção da quota que comparticipa nas vantagens e nos encargos da coisa comum; pode concretizar a quota a qualquer momento, pondo fim à communio pro indiviso; e a disposição ou oneração de toda a quota ou parte dela só depende da sua vontade.

Ora, a solução consagrada no n.º 8 do artigo 1091.º afasta-se deste regime, porque afeta parte especificada da coisa comum ao uso exclusivo do preferente, privando os demais consortes do uso a que igualmente têm direito. Para promover a estabilidade na habitação, a lei faz a distinção entre titularidade (alínea a) do n.º 8) e uso ou afetação prática do local arrendado (alínea b) do n.º 8), permitindo desse modo que parte especificada da coisa comum seja destinado ao uso de um só dos consortes. A divisão material do gozo imediato da coisa comum é, porém, feita sem acordo maioritário dos restantes comproprietários e sem lhes facultar a possibilidade de igualmente se servirem dela.

Quer isto dizer que a atribuição legal do uso exclusivo da parte do prédio correspondente ao locado pressupõe a extinção da relação locatícia. Na verdade, sem a previsão dessa faculdade, a preferência na aquisição pelo arrendatário de uma fração ideal do prédio não implicaria a cessação imediata do contrato de arrendamento. Se o comproprietário pode utilizar a coisa comum, certo é que do artigo 1406.º, n.º 1, resulta que não pode privar os demais consortes de igual direito. Por isso, o preferente, na qualidade de novo comproprietário, não poderia prescindir do arrendamento para continuar a beneficiar em exclusivo da parte do prédio correspondente ao locado (Agostinho Cardoso Guedes, ob., cit. pág. 181, e Maria Olinda Garcia, O Arrendamento Plural. Quadro Normativo e Natureza Jurídica, Coimbra Editora, pág. 161).         

 

10. O factor determinativo da forma como o arrendatário exerce o direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º é a circunstância do arrendamento incidir sobre «parte de prédio não constituído em propriedade horizontal». Como o “local arrendado” está integrado num prédio não constituído em propriedade horizontal, sobre esse local não pode incidir um direito de propriedade autónomo, cindível daquele outro, mais abrangente, que tem por objeto o prédio na sua globalidade.

 Num prédio em propriedade horizontal, o arrendatário apenas tem direito de preferência na alienação da fração autónoma por si arrendada e não na alienação de outras frações autónomas do mesmo prédio pertencentes ao senhorio. Porém, o problema é bem diferente quando não existe autonomização jurídica do local arrendado, dado não haver propriedade horizontal. Neste caso, até à entrada em vigor da norma sub juditio, perguntava-se se o direito de preferência podia impor-se além dos limites físicos do local arrendado, ou, antes, se deveria coincidir com o objeto do direito preexistente que o justifica. O que estava em causa era saber qual o alcance do conceito “local arrendado”, referido no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), para efeitos do reconhecimento do direito de preferência ao arrendatário: devia ser interpretado no sentido de “limites físicos” do local arrendado ou no sentido de “prédio arrendado”?

A resposta à questão foi bastante controversa no domínio da vigência do artigo 47.º da RAU, e não parece que tenha ficado resolvida pelo artigo 1091.º do Código Civil, introduzido pelo NRAU, apesar da diferente redação do preceito. Perante a incerteza do sentido normativo daquele preceito da RAU, que, no n.º 1, substituiu a expressão “prédio arrendado” do direito anterior por “local arrendado” e passou a identificar o sujeito da preferência como sendo o arrendatário de prédio urbano ou de fração autónoma, e no n.º 2, mandava abrir licitações, na hipótese de os preferentes serem dois ou mais arrendatários, sufragaram-se duas teses acerca do objeto da preferência do arrendatário: a teoria do local e a teoria expansionista.

A teoria do local afirmava que, em caso de transmissão onerosa do locado, o arrendatário só podia proferir na aquisição do local objeto do contrato de arrendamento. Assim, «ou o direito de preferência se pode exercer apenas em relação ao local arrendado, o que supõe a autonomização jurídica deste, ou o seu exercício é impossível». Por isso, entendia-se que «a preferência só operava perante o concreto “local arrendado”, ficando afastada caso tal local não pudesse ser autonomamente transacionado» (Oliveira Ascensão, Direito de preferência do arrendatário, in, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocência Galvão Teles, Vol. III, Coimbra, 2002, págs. 254 e ss.).

Em sentido oposto, a teoria expansionista defendia que, no caso «de a alienação projetada ou realizada se referir à totalidade do imóvel, não subordinado ao regime da propriedade horizontal, a preferência competirá a todos os coarrendatários das partes do mesmo imóvel, cujo contrato perdure há mais de um ano». Portanto, a preferência, a ser exercida pelo arrendatário, não incidia sobre a parte do prédio que era objeto de locação – na medida em que não foi juridicamente autonomizado -, mas sobre a totalidade do prédio (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 1987, pág. 568).

Porém, nenhuma das referidas alternativas – teoria do local ou teoria expansionista – admitia que o direito de preferência do arrendatário pudesse incidir isoladamente sobre fração de prédio não constituído em propriedade horizontal – o “local arrendado”. E para o ponto que nos interessa, importa sublinhar que o equilíbrio de interesses característico da relação de preferência ficava sempre salvaguardado, qualquer que fosse a resposta a dar a esse problema. É que a prioridade do preferente em detrimento do terceiro seria sempre exercida em paridade com as condições negociadas entre o vinculado à preferência e esse terceiro, pois a falta de coincidência entre os limites do objeto arrendado e os limites do objeto a adquirir através do exercício do direito de preferência não impediria a celebração de contrato de natureza e objeto idêntico àquele que o vinculado à preferência decidisse celebrar com terceiro.

 

11. Sobre esta questão pronunciaram-se dois arestos do Tribunal Constitucional: o Acórdão n.º 225/2000 e o Acórdão n.º 583/2016.

No primeiro, os proprietários invocaram a inconstitucionalidade, por violação do artigo 62.º da Constituição, do artigo 47.º do RAU, quando interpretado em termos de o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal ter direito de preferência na alienação da totalidade do prédio (interpretação condizente com a “teoria expansionista); no segundo, os arrendatários invocaram a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a parte arrendada ou sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio (interpretação correspondente à “teoria do local”).

Em ambos os arestos o Tribunal proferiu um julgamento de não inconstitucionalidade.

No Acórdão n.º 225/2000 considerou-se que o direito de preferência sobre a totalidade de prédio indiviso não põe em causa a liberdade de alienação, mas apenas a liberdade de escolha da outra parte no negócio e que a limitação da liberdade de escolha do contratante não é arbitrária ou materialmente infundada. Considerou-se que o direito a transmitir a propriedade não é afectado, porque «o estabelecimento de um direito de preferência não obriga o proprietário a vender, nem o impede de vender, mas apenas o obriga a, caso decida vender, atribuir preferência nessa alienação, em igualdade de circunstâncias, ao arrendatário do prédio. Em causa não está a liberdade de alienação, mas apenas a liberdade de escolha da outra parte no negócio, que pode efetivamente ver-se limitada pela lei ordinária, através da atribuição de um direito de preferência, em atenção à necessidade de proteção de outro tipo de interesses, sem que com isso se viole o disposto no artigo 62.º da Constituição (…). É que, não lhe é retirado o direito de alienar parte do prédio ou a sua totalidade, mas apenas se lhe impõe que, tanto por tanto, venda ao arrendatário».

Por sua vez, no Acórdão n.º 583/16 – apreciando a constitucionalidade de norma de conteúdo idêntico, mas agora colocada na perspetiva inversa, ou seja, inadmissibilidade do direito de preferência exercido pelo arrendatário de parte não autonomizada na venda da totalidade do prédio – o Tribunal considerou, além do mais, que (i) não há violação do direito à habitação, previsto no artigo 65.º, n.ºs 1 e 3 da CRP, porque  não se pode extrair desse preceito «a exigência imperativa de que uma das vias de realização do direito à habitação seja a da previsão legislativa de aquisição, através do direito de preferência, em termos gerais, a quem já dispõe de uma habitação arrendada, do direito de propriedade sobre um bem imóvel que exceda o locado»; e que (ii) não há restrição desproporcionada ao direito de acesso à propriedade, quer porque «tal direito não existe com a pretendida configuração (enquanto direito fundamental previsto na Constituição), pelo que afastado está que tenha sido desproporcionadamente restringido, quer porque «o direito à habitação não se confunde com o direito de propriedade e não tem que se realizar necessariamente (em geral e, especialmente, em hipóteses como a dos presentes autos) por via do direito de propriedade, que, manifestamente, não está em causa».

Destes acórdãos ressai a ideia de “neutralidade da Constituição” quanto à exigência da coincidência entre os limites do objeto do arrendamento e os limites do objeto em relação ao qual se exerce a preferência. Não existe uma imposição constitucional da teoria expansionista ou da teoria do local, gozando assim o legislador de ampla margem de conformação do direito à habitação e do conteúdo e limites do direito de propriedade. E daí que a opção por se estender ou não o direito de preferência do arrendatário para além da dimensão física do local arrendado dependa do equilíbrio de interesses que o legislador pretenda salvaguardar com a atribuição do direito de preferência.

Não obstante no presente processo também estar em causa o direito de preferência do arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, a questão de direito a resolver não é idêntica à que foi considerada naqueles acórdãos. O direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil - a norma que constitui o objeto material do recurso - contém pressupostos substancialmente diversos do direito de preferência que é atribuído pela alínea a) do n.º 1 do mesmo artigo – a norma que naqueles acórdãos não foi julgada inconstitucional. É evidente que há semelhança quanto ao objeto do direito que suporta a preferência - o local arrendado -, mas são diversos o objeto da preferência e o direito a adquirir pelo arrendatário. Nos casos decididos naqueles acórdãos, que consideraram constitucionalmente irrelevante a maior ou menor extensão espacial do objeto da preferência, a admissibilidade da preferência facultava ao arrendatário a aquisição, em paridade de condições, da propriedade plena do local arrendado; já a preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º possibilita a aquisição da quota-parte do prédio correspondente à permilagem do local e o uso exclusivo do local arrendado.

Por isso, a questão jurídico-constitucional não tem necessariamente a mesma solução jurídica. É decisivo ter presente que o arrendatário não toma para si, em condição de tanteio, a totalidade do prédio alienado, mas apenas uma parte alíquota do mesmo, e que, se exercer a preferência, mantém em exclusividade o uso de parte da coisa comum.

Nestas condições, o direito de preferência envolve maior limitação ao direito de livre disposição da propriedade, uma posição jurídica patrimonial que goza de proteção jurídico-constitucional através do direito de propriedade privada, previsto no artigo 62.º da Constituição.

 

12. No artigo 62.º, n.º 1, a Constituição consagra a garantia da propriedade privada, ao estabelecer que «a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição».

A doutrina e a jurisprudência constitucional têm vindo a interpretar esta norma como estabelecendo uma dupla garantia da propriedade privada: uma garantia institucional, que se traduz na proteção da propriedade como instituto jurídico; e uma garantia individual, que protege como direito fundamental posições jurídicas sobre bens de valor patrimonial. Assim se expressa no Acórdão n.º 496/2008: «o artigo 62.º da CRP consagra, não apenas direitos fundamentais (com estrutura análoga dos direitos, liberdades e garantias), mas também uma importante garantia institucional».

Neste entendimento, a dimensão institucional e objetiva, como garantia de instituto, consubstancia, positivamente, uma injunção dirigida ao legislador no sentido de produzir normas que permitam caracterizar um direito individual como propriedade no sentido constitucional e possibilitem a sua existência e capacidade funcional, e negativamente, uma proibição de aniquilar ou afetar o instituto infraconstitucional da propriedade. Como bem refere Maria Lúcia Amaral «a propriedade privada e o direito à sua transmissão, em vida ou por morte, constituem-se em institutos efetivamente existentes no seio da ordem jurídica portuguesa, pelo que ficam proibidas todas aquelas ações conformadoras dos poderes constituídos – particularmente do legislador ordinário – que venham ou pretendam vir a aniquilar tais institutos, erradicando-os do seio do nosso direito objetivo infraconstitucional» (Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, 1998, pág. 555).

Note-se, contudo, que o poder do legislador conformar o instituto da “propriedade” não é absoluto. Para além de ter de respeitar o conteúdo mínimo do instituto recebido e reconhecido pela Constituição, o legislador só pode conformar a “propriedade” «nos termos da Constituição». Significa isto, por um lado, que «o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição [para] ela remeter ou quando se trate de revelar limitações constitucionalmente implícitas) por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 801); e por outro, que o legislador tem a obrigação de «conformar o instituto, não de qualquer modo, mas tendo em conta a necessidade de o harmonizar com os princípios constitucionais no seu conjunto» (Rui Medeiros, in idem/Jorge Miranda (org), Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª edição, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2017, pág. 1245).

Deste modo, a garantia constitucional articula-se expressamente com as funções desempenhadas pela lei na conformação do conteúdo e limites da propriedade: o direito de propriedade «tem de se compaginar com os outros imperativos constitucionais, sofrendo as limitações impostas por estas exigências» (Acórdão n.º 345/2009). Por isso, a parte final do n.º 1 do artigo 62.º «significa que, neste domínio, a liberdade de conformação legislativa se encontra particularmente vinculado ao cumprimento de certos limites constitucionais: o poder legislativo está obrigado pela CRP a “conformar” a “propriedade”, mas só o pode fazer nos “termos” por ela mesmo definidos, ou seja, tendo em linha de conta o sistema constitucional no seu conjunto» (Acórdão n.º 496/2008).

Assim, por força do próprio artigo 62.º, quando garante a propriedade “nos termos da Constituição”, a atividade do legislador na determinação do conteúdo e limites do direito de propriedade encontra-se submetida a limites explícitos noutros normativos constitucionais, mas também a limites não expressos, “decorrentes de outras regras e princípios constitucionais, que vão desde os princípios gerais da constituição económica e financeira (entre os quais as obrigações fiscais: art.º 103.º), até aos direitos sociais (defesas do ambiente, do património cultural, etc.)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 802).

É certo que o enunciado normativo do artigo 62.º não prevê a possibilidade genérica de intervenção restritiva do legislador para salvaguarda do interesse geral, nem contém sequer explícita reserva de lei restritiva. Apenas em domínios específicos a Constituição prevê expressamente que os atos de ablação da propriedade devem observar os pressupostos e requisitos fixados na lei (artigos 62.º, n.º 1, 65.º, n.º 4, 83.º e 88.º). Tal não significa, porém, que a outras formas de privação da propriedade e às demais restrições ao direito de propriedade, ainda que não expressamente mencionadas, não seja aplicável o regime próprio das restrições, definido no artigo 18.º da Constituição. Como se refere no Acórdão n.º 421/2009, independentemente da questão de saber qual o sentido que, em geral, deve ser conferido ao segmento inicial do n.º 2 do artigo 18.º, «parece certo, antes do mais, que a autorização constitucional para restringir se não identifica com necessidade de referência textual explícita a um certo e determinado instituto a adotar pelo legislador ordinário, referência essa que teria que constar do articulado da CRP. Como nenhuma constituição é apenas um texto, a autorização que a Constituição portuguesa confere para que um determinado direito venha a ser, por lei, restringido, não pode ser entendida, assim, nesses apertados termos, como uma exigência de textualidade».

A colocação sistemática do direito constitucional de propriedade no âmbito dos direitos económicos, sociais e culturais e a proteção “nos termos da Constituição” acentuam considerações objetivas que contribuem para a definição do seu conteúdo e limites. Com efeito, o âmbito de proteção daqueles direitos fundamentais acolhe valores e interesses sociais que devem ser ponderados quando em confronto com o direito de propriedade privada, como acontece como o direito à habitação (artigo 65.º) e o direito ao ambiente e qualidade de vida (artigo 66.º), assim como com os diversos regimes específicos de propriedade que a Constituição recorta em função da individualidade e destinação do respetivo objeto (artigos 65.º. n.º 4, 88.º, 94.º, 95.º, 96.º), que preveem restrições que encontram justificação na aptidão da propriedade para a prossecução de interesses sociais.

De modo que, tal como os demais direitos fundamentais, o direito de propriedade pode ser restringido por «razões sociais», nos termos que relevam do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, ou seja, por razões de importância constitucional. O que está vedado são intervenções legislativas restritivas do direito de propriedade, tendo em vista a prossecução de valores e interesses que não gozem, também eles, de proteção da Constituição.

A dependência do direito de propriedade de um enquadramento social vinculativo é constante na jurisprudência do Tribunal Constitucional, que admite restrições ao direito de propriedade baseadas na “cláusula legal de conformação social da propriedade”, mas sem que tal dispense a invocação dos parâmetros constitucionais que acolhem os interesses que lhe subjazem (Acórdãos n.ºs 76/1985, 486/1997, 194/1999, 329/1999, 322/2000, 138/2003, 148/2005).

Nesse sentido, diz-se no Acórdão n.º 421/2009:

«[A]pesar de a redação literal do preceito constitucional não conter, como é frequente em direito comparado, uma referência expressa às funções que a lei ordinária desempenha enquanto instrumento de modelação do conteúdo e limites da “propriedade”, em ordem a assegurar a conformação do seu exercício com outros bens e valores constitucionalmente protegidos, a verdade é que essa remissão para a lei se deve considerar implícita na “ordem de regulação” que é endereçada ao legislador na parte final do n.º 1 do artigo 62.º, e que o vincula a definir a ordem da propriedade nos termos da Constituição. Tal vinculação não será, portanto, substancialmente diversa da contida, por exemplo, no artigo 33.º da Constituição espanhola (“É reconhecido o direito à propriedade privada (…). A função social desse direito limita o seu conteúdo, em conformidade com as leis.”); no artigo 42.º da Constituição italiana (“A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina o seu modo de aquisição, gozo e limites com o fim de assegurar a [sua] função social (…)”; no artigo 14.º da Lei Fundamental de Bona (“A propriedade e o direito à herança são garantidos. O seu conteúdo e limites são estabelecidos pela lei (...). O seu uso deve servir ao mesmo tempo os bens coletivos”.

Embora a Constituição lhe não faça uma referência textual, existirá portanto, e também entre nós, uma cláusula legal da conformação social da propriedade, a que aliás terá aludido desde sempre a jurisprudência constitucional, ao dizer que “[e]stá tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da conceção clássica do direito de propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et abutendi – ou na formulação impressiva do Código Civil francês (…) enquanto direito de usar e dispor das coisas de la manière la plus absolue (...). Assim, o direito de propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com outras exigências constitucionais” (referido Ac. n.º 187/2001, § 14, citando anterior jurisprudência)».

 

Quer isto dizer que a margem de liberdade do legislador para determinar o conteúdo e limites da propriedade é tanto mais alargada quanto mais o objeto da propriedade estiver ao serviço da satisfação de um conjunto diversificado de necessidades sociais e económicas, de acordo com o programa constitucional. Nesses casos, a prossecução dos interesses sociais só pode ser efetuada com diminuição do âmbito dos poderes e faculdades que formam o conteúdo subjetivo da propriedade privada. Por isso, quando a utilização e a decisão sobre um bem não se circunscrevem à esfera do proprietário, antes tocam interesses do todo social, a cláusula de conformação social da propriedade contida no artigo 62.º da CRP possibilita ao legislador ordinário tomar em consideração interesses dos não proprietários contrapostos aos interesses dos proprietários, modelando ou restringindo o direito de propriedade de acordo com parâmetros constitucionais pertinentes. Como sintetiza o Acórdão n.º 148/2005: «O próprio projeto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito de poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de limitações ou condicionamentos, quer a favor do Estado ou da coletividade, quer a favor de terceiros, das liberdades de uso, fruição e disposição (cfr., de entre outros, Acórdão n.º 866/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 34º, p. 53 e ss.)».

 

13. A dimensão objetiva da garantia constitucional da propriedade privada não deve, porém, ser sobrevalorizada à custa da dimensão individual ou subjetiva. Como refere Rui Medeiros, «a Constituição protege a propriedade privada porque a encara como um espaço de autonomia pessoal, isto é, como um instrumento necessário para a realização de projetos de vida livremente traçados, responsavelmente cumpridos, e que não podem nem devem ser interrompidos ou impossibilitados por opressivas ingerências externas» (ob. cit., pág. 901) – não se esvaziando por isso a dimensão jus-subjetiva da garantia constitucional da propriedade privada.

E isto justamente porque através da propriedade privada confere-se aos indivíduos um conjunto indefinido de poderes e faculdades, incluindo poderes de transmissão, que aumentam as suas possibilidades de atuação. Desse modo, a garantia constitucional da propriedade privada cumpre a função de assegurar ao respetivo titular um espaço de liberdade na esfera jurídico-patrimonial, através do reconhecimento de pretensões jurídicas individuais de uso, aproveitamento e fruição, numa base exclusiva, possibilitando, assim, uma formação responsável da vida. 

Enquanto direito fundamental, o artigo 62.º, n.º 1, da CRP, garante às pessoas «a existência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante»; e a garantia de existência da propriedade – e a sua utilização e disposição – significa que a «uma posição jurídica de direito privado é associado um direito subjetivo público de defesa ou manutenção dessa posição (Miguel Nogueira de Brito, A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional, Coimbra, 2007, págs. 846 e 852).

Por conseguinte, atenta a dimensão de espaço de liberdade e autonomia individual, de liberdade geral de ação do proprietário face aos poderes públicos (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), o direito de propriedade privada configura um direito de defesa, com estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias. Em jurisprudência constante, o Tribunal tem dito que, «sendo afinal a “propriedade” um pressuposto da autonomia, não obstante a inclusão do direito que lhe corresponde no título respeitante aos “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”, alguma dimensão terá ele que permita a sua inclusão, pelo menos parcial, nos clássicos direitos de defesa, ou para usar a terminologia da CRP, em alguma da sua dimensão será ele análogo aos chamados direitos, liberdades e garantias» (Acórdão n.º 421/2009 e jurisprudência aí citada).  

De facto, desde há muito que é consensual na doutrina e na jurisprudência a qualificação do direito de propriedade privada como direito, liberdade e garantia de natureza análoga. Mas também é pacífico que o direito fundamental de propriedade não abrange todos e quaisquer poderes e faculdades de uso, fruição e disposição dos bens, mas apenas aquelas dimensões que sejam essenciais à realização da autonomia do homem com pessoa. Nesse sentido, Luís Cabral de Moncada refere que «existe efetivamente uma barreira subjetiva da propriedade privada verdadeiramente indestrutível, composta por um conjunto de poderes e faculdades sobre bens que se afiguram indispensáveis ao livre desenvolvimento da personalidade humana» (Direito Económico, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 155).

 Ora, é apenas a essas dimensões análogas que se aplica, nos termos do artigo 17.º da Constituição, o regime dos direitos, liberdades e garantias, nomeadamente quanto aos requisitos a que se sujeitam as leis que os restrinjam, contidos no artigo 18.º. Como se diz no Acórdão n.º 425/2000, «embora seja indiscutível que o direito de propriedade, no seu núcleo essencial, é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, as condições constitucionalmente exigidas para as leis restritivas apenas valem nesse domínio na dimensão em que o direito tiver essa natureza análoga». 

A dificuldade está, porém, em encontrar o critério à luz do qual se possa determinar que dimensões do direito constitucional de propriedade privada devem beneficiar do regime específico dos direitos, liberdades e garantias. A orientação que tem vindo a ser seguida é a de limitar a natureza análoga às dimensões que consubstanciem «aquele “radical subjetivo” que o aproxima dos direitos fundamentais subjetivos de tipo clássico, negativos, diretamente invocáveis» (Parecer n.º 32/82 da Comissão Constitucional); «que são verdadeiramente significativas e determinantes da sua caracterização como garantia constitucional» (Acórdãos n.ºs 404/1987, 194/1989 e 195/1989); que sejam «essenciais à realização do Homem como pessoa» (Acórdãos n.ºs 329/1999 e 187/2001); ou que se mostrem indispensáveis à conceção do direito de propriedade como garantia de “espaço de autonomia pessoal” (Acórdão n.º 374/2003).

Desse núcleo, dessa dimensão que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte o «direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública – e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indeminização» (Acórdãos n.ºs 329/1999, 377/1999, 517/1999, 187/2001, 159/2007 e 421/2009). Na verdade, a dimensão de proteção contra a privação da propriedade – ínsita nos n.ºs 1 e 2 artigo 62.º da CRP, relativamente à requisição e à expropriação, mas que também pode abranger outros atos ablativos (Acórdãos n.ºs 391/2002, 491/2002 e 159/2007) – não pode deixar de integrar o conteúdo da propriedade que o legislador não pode desvirtuar, sob pena de não respeitar o mínimo da liberdade de apropriação que permita o desenvolvimento da personalidade individual.

A garantia de permanência da propriedade não é, porém, a única dimensão do direito constitucional de propriedade a que poderá ser reconhecida natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. Apesar do direito à justa indemnização, consagrado no n.º 2 do artigo 62.º, ser a única dimensão a que o Tribunal tem reconhecido natureza análoga, «outras dimensões do direito de propriedade, essenciais à realização do Homem como pessoa (…), podem, eventualmente, ser reconhecida natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias» – como se disse no Acórdão n.º 187/2001.

Assim, os poderes e faculdades que sejam essenciais à garantia de um “espaço de autonomia pessoal” (Acórdão n.º 374/2003) justificam a respetiva qualificação como direitos, liberdades e garantias de natureza análoga. A efetividade dessa garantia não pode estar na dependência da intervenção do legislador, já que não se deve «perder de vista que a dependência de lei que caracteriza a propriedade não significa que a própria proteção constitucional da propriedade fique refém da lei. Por isso, nem todas as intervenções do legislador em matéria de concretização do conteúdo dos direitos patrimoniais são simples determinações do seu conteúdo, podendo ocorrer verdadeiras restrições, que assim ficam sujeitas ao regime mais exigente das leis restritivas» (Rui Medeiros, ob. cit. pág. 1257).

E não pode, na verdade, deixar de concluir-se que o direito constitucional de propriedade integra poderes e faculdades subjetivas intangíveis, através da abstenção do legislador. Como refere Miguel Nogueira de Brito, «os direitos de conteúdo patrimonial adquiridos com base na lei são protegidos contra posteriores lesões pelo poder público do Estado, efetuadas designadamente através da lei, sem que isso envolva qualquer resultado paradoxal. Enquanto direito fundamental, isto é, direito subjetivo dos indivíduos, o artigo 62.º, n.º 1, garante a estes a existência de bens e direitos em face do poder do Estado, nos termos em que eles foram adquiridos, em conformidade com as normas vigentes no momento relevante» (ob. cit., págs. 852 e 853).

 

14. Para além do direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade, a relação privada protegida pelo n.º 1 do artigo 62.º da CRP compreende (i) o direito de aceder à propriedade, (ii) o direito à transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa, (iii) e a liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário. Enquanto os dois primeiros estão expressamente enunciados na norma do n.º 1 daquele artigo, o direito ao uso e fruição está implícito na garantia constitucional, já que a garantia de existência de propriedade, entendida como expressão de liberdade individual, só ganha sentido se for acompanhada da possibilidade de aproveitamento livre dos bens, no interesse do respetivo titular.

No que respeita aos direitos e faculdades de uso do proprietário, nem todos podem ser objeto de proteção da garantia constitucional da propriedade. A modelação do conteúdo da propriedade, justificada em nome da cláusula da conformação social da propriedade, pode não entrar no conteúdo intangível que se ergue prima facie contra os poderes públicos. De facto, a conformação legislativa da propriedade incide as mais das vezes sobre a utilização das coisas que são objeto do direito de propriedade e não sobre o direito em si, deixando intocado o mais relevante do seu conteúdo. Por isso, a jurisprudência constitucional tem afastado do âmbito de proteção da garantia constitucional da propriedade os direitos de urbanizar, lotear e edificar, quando limitados ou afetados por licenças administrativas, planos de ordenamento ou diplomas de classificação de áreas protegidas (Acórdãos n.ºs 329/1999, 517/1999, 602/1999, 377/1999, 394/2004, 496/2008, 14/2009).

Relativamente ao direito à propriedade, no sentido de direito de apropriação ou faculdade de acesso à propriedade de bens, o Tribunal excluiu do âmbito dos direitos de natureza análoga o acesso à propriedade dos bens «farmácia» e «firma» (Acórdãos n.ºs 187/2001 e 139/2004), quando interpretado na função individual de liberdade de apropriação, considerando que o direito é tutelado por outros princípios constitucionais, como a liberdade de iniciativa privada ou o direito geral de liberdade resultante da conjugação dos artigos 26.º, n.º 1 e 27.º, n.º 1, da CRP. De facto, como refere Miguel Nogueira de Brito, «deve entender-se que a proteção constitucional da propriedade incide sobre situações jurídicas subjetivas concretas, já existentes na esfera jurídica de uma pessoa, não abrangendo expectativas futuras ou possibilidades de obter um ganho patrimonial», e por isso, a “aquisição”, que é a atividade em si mesmo e não o resultado de uma atividade, deve ser «incluído no âmbito de proteção da liberdade profissional e da liberdade de iniciativa privada» (ob. cit., págs. 940 e 941); ou como se diz no Acórdão n.º 187/2001 «o regime de tal liberdade não pode ser confundido com o do direito de propriedade – mesmo enquanto este inclui uma dimensão de acesso à propriedade». Já na função social de acesso da propriedade a todos, considera-se que é um direito fundamental de carácter económico (Acórdão n.º 76/1985). 

Quanto à liberdade de transmissão da propriedade – a faculdade afetada pelo direito legal de preferência –, o n.º 1 do artigo 62.º garante que não pode haver bens vinculados ou sujeitos a interdição de alienação, o que é entendido no «sentido restrito de direito de não ser impedido de a transmitir; mas não no sentido genérico de liberdade de transmissão, a qual pode ser mais ou menos profundamente limitada por via legal, quer quanto à transmissão inter vivos (obrigações de venda, direito de preferência, etc.), quer quanto à transmissão mortis causa (limites à liberdade de disposição testamentária, desde logo, a sucessão legitimária)» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 804).

Nos casos em que a intervenção legislativa conflitua com o direito a não ser impedido de transmitir - vertente positiva da liberdade de transmissão -, o Tribunal tem vindo a recusar natureza análoga à dimensão genérica da liberdade de transmissão: no Acórdão n.º 187/2001 afirmou-se perentoriamente que “a liberdade genérica de transmissão do direito de propriedade, sem condicionamentos, não constitui dimensão do direito de propriedade à qual se aplique o regime dos direitos, liberdades e garantias”, aplicando tal entendimento a normas limitadoras da transmissão da propriedade de farmácias.

No que toca às intervenções conflituantes com o direito a não transmitir - vertente negativa da liberdade de transmissão –, cabe dizer que o Tribunal já as considerou como verdadeiras restrições de posições jusfundamentais dos proprietários, porque a obrigação de contratar derroga o princípio geral segundo o qual o sujeito contrata se quiser, quando quiser e com quem quiser, e por isso mesmo deve ser enquadrada no âmbito de aplicação do direito de cada um à não privação da propriedade. Assim, no Acórdão n.º 421/2009 – que incidiu sobre norma que previa a “venda forçada” de edifícios em consequência do incumprimento de deveres de reabilitação urbana – considerou-se que, «para todos os efeitos, o instituto da venda forçada implica a imposição de transmissão a outrem do bem de que é titular e, por isso mesmo, a sua perda»; nessa medida, «porque a posição jusfundamental que assim é afetada detém estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias, será indiscutivelmente aplicável a qualquer ato legislativo que a restrinja o regime próprio dos limites das restrições, definido no artigo 18.º da Constituição».

Observe-se, todavia, que a integração das intervenções conflituantes com a liberdade de não transmitir no campo de aplicação do direito de cada um à não privação da propriedade – como se faz no Acórdão n.º 421/2009 – não significa decerto que é apenas essa liberdade negativa que tem «natureza análoga». É claro que a liberdade de transmissão é um direito de conteúdo defensivo – e só por isso tem «natureza análoga – que pode ser exercido positivamente (transmitindo) ou negativamente (não transmitindo).

 

15. O poder de transmissão de direitos patrimoniais reclama, necessariamente, a existência de liberdade contratual em geral e de liberdade de disposição testamentária em particular, ainda que não sejam irrestritas. A liberdade contratual constitui, assim, o instrumento jurídico necessário ao exercício da propriedade privada. Pode mesmo dizer-se que a afirmação do poder sobre uma coisa produz-se quando o proprietário a aliena. Por seu turno, a liberdade contratual representa a mais importante manifestação da autonomia privada. Como escreve Mota Pinto, a autonomia privada encontra os «veículos da sua realização nos direitos subjetivos e na possibilidade de celebração de negócios jurídicos» (Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 90).

 Ora, o princípio da autonomia privada tem dignidade constitucional, podendo ser inferido dos preceitos que consagram a liberdade no desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º), a liberdade de iniciativa privada (artigo 61.º) e o próprio direito constitucional à propriedade, pois – como se refere no Acórdão n.º 421/2009 - a “propriedade” também é “um pressuposto da autonomia das pessoas”.

Tal como o direito de propriedade, a autonomia privada e a liberdade contratual existem na medida em que, direta ou indiretamente, o legislador permite e delineia. Porém, para além da previsão de normas jurídicas imperativas que enquadrem socialmente a propriedade e a liberdade contratual, existe um espaço de autodeterminação individual que implica, por parte do Estado, dever de abstenção. A Constituição «recebe, como princípio de valor, a autonomia privada, não deixando dúvidas de que não quer destruir nem apoucar o livre desenvolvimento da personalidade, a livre iniciativa económica, a liberdade negocial, a propriedade privada, a família ou o fenómeno sucessório» (Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., Almedina, pág. 242).          

Pode, portanto, concluir-se que a faculdade de transmissão, necessariamente exercida através de negócio jurídico, conexiona o exercício da propriedade com a autonomia privada: o proprietário, quando aliena, exerce simultaneamente o seu direito patrimonial e a sua liberdade contratual. Daí ser necessário – no âmbito da apreciação da conformidade constitucional – distinguir as limitações ao poder de disposição que se repercutem no âmbito da autonomia negocial do proprietário das limitações que aí se projetam.

Assim, há “condicionamentos” ou “restrições” à transmissão da propriedade que se impõem em função do tipo e natureza do direito a transmitir, sem provocarem qualquer limitação ao âmbito da autonomia privada do proprietário. Por exemplo, as limitações à transmissão da propriedade de farmácias decorriam do facto do direito de propriedade estar reservado apenas a farmacêuticos (Acórdão n.º 187/2001); de igual modo, a alienação forçada de “partes sociais” a acionistas maioritários justificou-se por ter por objeto “propriedade corporativa”, incindivelmente ligada à organização ou ente social (Acórdão n.º 491/2002). Em ambos os casos, as limitações ao direito de transmissão dependem diretamente da natureza e extensão do direito do transmitente e não de restrições à autonomia negocial do proprietário.

Por sua vez, há limitações que relevam do domínio contratual que se repercutem no âmbito dos poderes de disposição do proprietário, mas que não afetam a liberdade genérica de transmissão. Por exemplo, a impossibilidade de se doar gratificações aos empregados das mesas de jogo dos casinos resulta da regra de proibição de perceção individual de quaisquer quantias e não de uma qualidade do gratificante (Acórdão n.º 497/1997. Neste caso, chamado de “indisponibilidade relativa”, a restrição do poder de disposição não resulta de uma qualidade do disponente em si, mas da posição em que ele se encontra perante outros sujeitos.

Porém, as limitações e restrições à faculdade de disposição da propriedade, desde as que afetam a liberdade de contratar até às que respeitam à liberdade de estipulação do contrato, devem salvaguardar uma área de autodeterminação dos proprietários no trato privado. A autonomia – e o próprio negócio jurídico – cessarão se o peso imperativo das normas que determinam o conteúdo e limites da propriedade eliminar o espaço autónomo de liberdade que se reputa valor fundamental. Por isso, os limites postos aos movimentos que o titular faça para dispor da própria coisa entram no domínio da tutela da personalidade e liberdade do sujeito, e não do seu interesse em servir-se da coisa dentro de certos limites.

É o que acontece com as limitações ao direito de não ser impedido de transmitir a propriedade, que não são nada mais, nada menos do que a faceta negativa (de abstenção) da obrigação de respeito do direito à liberdade de cada um.  

 

16. O direito legal de preferência do arrendatário constitui um limite ao direito de propriedade do senhorio: ao fazer nascer para o senhorio a obrigação de dar possibilidade ao arrendatário de exercer direito de preferência na transmissão onerosa do local arrendado, está-se a impor limites à liberdade de escolha do outro contraente.

Observada na sua estrutura subjetiva, a relação de preferência é constituída por um sujeito ativo – preferente – que adquire, com afastamento de outro adquirente, e nas mesmas condições acordadas com este, um direito relativo a uma coisa, e por um sujeito passivo – titular do direito sobre a coisa a transmitir –, obrigado a dar preferência a certa pessoa em detrimento de outra. Assim, o titular do direito real, caso pretenda realizar negócio jurídico que origina prelação (em geral, compra e venda ou dação em pagamento), é obrigado a comunicar o projeto negocial ao preferente, a fim de que este decida se pretende ou não preferir.

Pelas regras dos artigos 416.º a 418.º do Código Civil, a relação que se estabelece entre o obrigado à preferência e o preferente desenvolve-se do seguinte modo: (i) o obrigado à preferência, tendo intenção de vender a coisa objeto do direito de preferência, comunica ao preferente o projeto de venda e as cláusulas do contrato que pretende celebrar com terceiro; (ii) recebida a comunicação, o preferente tem um prazo para manifestar a vontade de comprar a coisa, nas mesmas condições em que o negócio se faria com o terceiro, encontrando-se o obrigado impedido de vender a coisa ao terceiro enquanto não se esgotar aquele prazo; (iii) exercida a preferência – e esta conclusão é segura no casos dos direitos legais de preferência –, circunstância que determina a constituição de um direito potestativo de preferir, impõe-se sobre o sujeito passivo da preferência a obrigação de contratar com o preferente e, do mesmo modo, este fica obrigado a contratar com aquele.

Como se vê, o direito de preferência constitui limite à liberdade contratual do indivíduo a ela vinculado, mais precisamente à liberdade de escolher a parte com quem pretende contratar. Embora o proprietário possa sempre entabular negociações com quem lhe aprouver, encontra-se, após notificar o preferente e enquanto a preferência puder legalmente ser exercida, num estado de sujeição relativamente a este último. Cabe ao preferente, com inteira autonomia, decidir se pretende ou não ocupar a posição do comprador no contrato de compra e venda que o obrigado pretende celebrar, e precisamente nos termos em que este o pretende celebrar (ressalvando-se, no artigo 418.º, a eventualidade de terem sido acordadas prestações acessórias entre o obrigado e o terceiro). E mais: sendo o direito de preferência exercido, não pode o obrigado desistir do negócio, sendo-lhe imposto o preferente como contraparte contratual. É que, a partir do momento em que o preferente declara ao sujeito passivo que quer exercer o seu direito, surge por efeito dessa declaração um dever de contratar com o preferente. Como refere Henrique Mesquita, antes da declaração do preferente existe «um direito de natureza potestativa, de cujo exercício, traduzido numa declaração de vontade do respetivo titular, dirigida ao sujeito vinculado à preferência, nasce uma nova obrigação a cargo deste – a obrigação de realizar o contrato de alienação com o preferente» (ob. cit., págs. 212 e 213). Naturalmente que, tratando-se de um dever de contratar com o preferente, este dispõe de um direito potestativo que corresponde a uma verdadeira execução específica de modo a ficar, por decisão judicial, titular do direito de propriedade sobre a coisa.  

À parte a limitação quanto à livre escolha da contraparte, o direito de preferência em nada afeta a posição subjetiva do proprietário. O obrigado tem inteira liberdade para dispor da coisa objeto de preferência, nos termos que bem entender – nomeadamente, quanto ao preço e às condições de pagamento - e à partida é-lhe indiferente, em termos económicos, vender a coisa ao preferente ou a qualquer terceiro. É certo que a preferência constitui oneração da propriedade e, do ponto de vista do alienante, pode ter relevância a maior ou menor solvabilidade financeira do preferente-comprador. No entanto, excetuando a restrição à liberdade de escolha da contraparte e os custos económicos, maiores ou menores, que lhe estão associados, o direito de preferência não limita de nenhum outro modo a posição jurídica do proprietário.

Assim sendo, o direito de preferência do arrendatário não constitui obstáculo ao exercício do direito de propriedade. O senhorio não deixa de ter a faculdade de transmitir a titularidade do locado, ficando apenas limitado quanto ao modo pelo qual o pode fazer. Ainda que a eficácia limitativa da liberdade seja forte, dada a eficácia real (erga omnes) de que goza o direito de preferência legal, o direito a transmitir não é afetado, pois o negócio não deixa de ser celebrado, em igualdade de circunstâncias, com parte diferente da primitivamente pensada.

Daí que o Tribunal tenha entendido que “o estabelecimento na lei de direitos de preferência não afeta, só por si, o conteúdo constitucionalmente reconhecido ao direito de propriedade em qualquer das suas dimensões”. Considerando que estava em causa a “liberdade de escolha da outra parte do negócio” e não “a liberdade de alienação”, considerou-se que a lei pode limitar tal liberdade, designadamente através da atribuição de um direito de preferência, “em atenção à necessidade de proteção de outro tipo de interesses”, sem que isso viole o disposto no artigo 62.º da Constituição (Acórdão n.º 225/2000).

 

17. Ora, no que especialmente respeita ao direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, as limitações aí previstas não se reduzem à faculdade de escolher livremente a pessoa com quem poderá ser realizado o negócio. O reconhecimento do direito de preferência ao arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal tem outras implicações na esfera jurídica do senhorio: (i) fica impedido de transmitir a terceiros a totalidade do prédio; (ii) com a declaração de preferência, fica obrigado a transmitir ao arrendatário a quota-parte ideal do prédio correspondente à permilagem do locado; (iii) não pode estipular livremente o preço do local arrendado; (iv) vê extinto o contrato de arrendamento; (v) com a subsequente afetação ao preferente do “uso exclusivo” da parte do prédio correspondente ao local arrendado. 

A liberdade do proprietário vender ou dar em cumprimento o prédio parcialmente arrendado está duplamente limitada: na vertente positiva, porque se quiser vender a totalidade do prédio não pode fazê-lo; na vertente negativa, porque se não quiser vender a quota-ideal, está obrigado a vendê-la ao preferente. Ou seja, após o senhorio decidir vender e o preferente decidir exercer o direito, o princípio de que ninguém é obrigado a contratar ou a deixar de contratar encontra aqui forte restrição: por um lado, impede-se o proprietário de celebrar o negócio que planeara, vendendo o prédio na sua totalidade; por outro, obriga-se o proprietário a celebrar um negócio que não pretende celebrar, vendendo quota-parte do direito de propriedade incidente sobre o mesmo. É certo que até pode acabar por vender o prédio na totalidade, se encontrar comprador interessado na quota-parte não alienada ao preferente. A realização de tal negócio não lhe é, porém, assegurada, constituindo uma mera eventualidade. De todo o modo, o contrato com o preferente será negócio distinto daquele que o proprietário projetara realizar, já que será sempre exercido em absoluta disparidade de condições com qualquer outro comprador.

Também, por sua vez, a norma questionada impõe limites à liberdade do proprietário estipular as condições em que pretende alienar o prédio parcialmente arrendado. Para além de não poder dispor integralmente do prédio, não pode escolher a medida da quota, nem o respetivo valor. O proprietário tem possibilidade de determinar concretamente o valor total da transação, mas a parte alíquota do prédio e o preço da alienação – o objeto do direito de preferência – é imposto pela alínea a) do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil: valor proporcional da quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado face ao valor total da transmissão. Para determinar a medida da quota correspondente à permilagem do locado, o proprietário tem que dividir o prédio em unidades físicas individualizadas – ainda que não constituídas em propriedade horizontal – e fixar-lhe o valor que, segundo o seu arbítrio, considere razoável. É esse valor relativo, expresso em permilagem do valor total do prédio, que indica a medida da quota do preferente no direito comum e que exprime a proporção em que irá participar nas vantagens e encargos do prédio (artigos 1403.º, n.º 2 e 1405.º do Código Civil). Todavia, para efeitos de transmissão da titularidade do direito, o valor assim determinado não tem que corresponder necessariamente ao valor da parte alíquota que é objeto do direito de preferência. Por várias razões, o valor de parte especificada da coisa pode não equivaler ao valor de mercado de uma parte indeterminada da mesma coisa. Assim, o proprietário não tem liberdade para decidir qual a fração ideal que pretende alienar (v.g. um terço, um quarto, etc.), como não pode atribuir a esta parte o valor patrimonial que melhor convier aos seus interesses.

Temos, por fim, limites à faculdade de gozo, sem concurso da vontade livre e efetiva dos proprietários comuns. A aquisição pelo arrendatário de fração ideal do prédio parcialmente arrendado não o priva do gozo exclusivo de parte do imóvel (alínea b) do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil), contrariamente ao que resulta das regras da compropriedade. Com efeito, a afetação ao preferente do “uso exclusivo” da parte especificado do prédio - a correspondente ao locado – implica divisão material do gozo do prédio, com consequente afastamento da regra do exercício «em conjunto» no que concerne à totalidade do prédio (artigo 1405.º, n.º 1, do Código Civil). Não obstante a indeterminação da quota ideal, que se reflete naquela regra, a lei atribui ao preferente o uso direto de parte especificada, sem acordo unânime dos consortes.

A referida tríade de restrições ao direito de propriedade – proibição de dispor da totalidade do prédio, compropriedade forçada e afetação do uso exclusivo – comporta intervenção na liberdade de atuação e no direito à autodisposição do proprietário e não simplesmente na reserva que a lei lhe faz do prédio. Daí que a preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil não atenta apenas contra a liberdade de escolher o cocontratante, contende com outras liberdades incluídas no direito de dispor, designadamente a liberdade de dispor ou não dispor e a liberdade de determinar as condições da transmissão. Não pode, na verdade, deixar de concluir-se pela existência de forte restrição ao direito de transmissão, no sentido restrito de direito de não ser impedido de transmitir o prédio. Está-se perante limitações significativas ao direito fundamental de propriedade privada: o proprietário corre o risco de ficar impedido de vender a coisa na sua integralidade, como pretendia e tinha, aliás, acordado; concomitantemente, corre o risco de, contra a sua vontade, se ver obrigado a vender parte da coisa (não tendo sido constituída propriedade horizontal, o prédio constitui uma única coisa); e os comproprietários ficam privados, sem o respetivo consentimento, do uso de parte da coisa comum a que têm direito.

E sendo isto assim, uma conclusão se pode tirar: a afetação do direito à liberdade jurídica do proprietário, singular ou comum, pode causar prejuízos apreciáveis. Não obstante a lógica da preferência assentar precisamente na ideia de que a substituição do contraente projetado pelo preferente não deve causar prejuízo ao obrigado à preferência, a verdade é que o exercício do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º é suscetível de interferir negativamente no ativo patrimonial do proprietário. Desde logo, porque não é provável que o comprador aceite continuar a comprar um imóvel cuja propriedade não vai adquirir plenamente, sendo mais provável que desista do negócio, ficando o arrendatário comproprietário do senhorio; depois, porque, além de correr o risco de não conseguir vender a quota-parte remanescente, não há nenhuma razão para supor que, conseguindo, o faça por um preço que, somado ao valor que recebera do preferente, iguale ou supere a oferta inicial, relativa ao prédio na sua integralidade; por último, a imposição ao proprietário obrigado à preferência de se tornar comproprietário do seu anterior arrendatário coloca-o em risco de, na ação de divisão da coisa comum que venha eventualmente a ser interposta por qualquer dos consortes, acabar por vender a coisa em condições muito diferentes – maxime no que respeita ao preço – daquelas que inicialmente projetara e acordara.

Importa, pois, reconhecer que o direito de preferência em análise pode contribuir para desvalorização muito significativa do prédio. É evidente que é mais vantajoso, na perspetiva do comprador – e, portanto, mediatamente, também do vendedor, uma vez que tal vantagem se reflete no preço –, comprar o prédio na sua totalidade do que adquirir quota-parte do direito de propriedade sobre ele incidente, em que uma das partes componentes está afeta por lei ao uso exclusivo de um dos consortes.

Acresce que, diferentemente do que acontece na venda de coisa conjuntamente com outra (artigo 417.º do Código Civil), quando aplicável à preferência do arrendatário, o legislador nem sequer acautelou a situação do proprietário quando tem dificuldade em arranjar comprador para as partes alíquotas não sujeitas à preferência. Naquele caso, o proprietário pode fixar livremente um preço para cada coisa em particular, que consta da comunicação para o exercício do direito de preferência, e tem à sua disposição – ao contrário do que sucede no âmbito da norma sub juditio – o mecanismo previsto na parte final do n.º 1 do artigo 417.º e densificado no n.º 7 do artigo 1091.º, relativo à venda de coisa juntamente com outras: «[s]e o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável». A faculdade de, em certas circunstâncias, exigir que a preferência abranja todas as coisas envolvidas no negócio projetado constitui importante salvaguarda do proprietário, obstando a sacrifício excessivo dos seus interesses, face aos do preferente. É seu pressuposto a existência de várias coisas que se projetam vender em conjunto: vários imóveis ou várias frações autónomas. Ora, no caso em apreço há apenas uma coisa: o prédio não constituído em propriedade horizontal. Assim, o facto de a venda cingida a uma parte do prédio constituir prejuízo apreciável não é tido em conta, o que constitui agravante adicional da posição do proprietário. Em termos sistemáticos, não será fácil justificar a diferença de tratamento: se há razões para, em certas circunstâncias, proteger o proprietário no caso de venda de coisas autónomas entre si, por maioria de razão as haverá no caso de venda de partes componentes da mesma coisa.

 

18. A limitação à liberdade de transmissão da propriedade prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil visa promover um interesse constitucionalmente protegido: «o acesso à habitação própria» (artigo 65.º, n.º 2, alínea c), e n.º 3 da CRP).    

Como já referido, a garantia constitucional da propriedade privada encontra-se vinculada à prossecução de importantes fins sociais, também eles prescritos ao legislador pela Constituição. Por isso, na fixação do conteúdo e limites do direito de propriedade, o legislador é obrigado a estabelecer um regime socialmente justo do direito de propriedade. Um dos interesses sociais a considerar na fixação desse regime é o direito à habitação: «o direito à habitação consiste no direito a obtê-la por via de propriedade ou arrendamento, traduzindo-se na exigência de medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. pág. 834). A limitação do direito de propriedade pode, assim, decorrer da necessidade de proteção do «direito social» à habitação.

Que o direito à habitação constitui direito fundamental, protegido pela Constituição, apto a justificar limitações e restrições ao direito de propriedade privada do senhorio, é proposição que não oferece dúvidas. Nos termos do artigo 65.º, n.º 1, «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar»; já a alínea c) do n.º 2 dispõe que, «[p]ara assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado» «[e]stimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada»; por sua vez, o n.º 3 determina que «[o] Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria».

O direito fundamental à habitação, na dimensão positiva, traduz-se na pretensão do cidadão em ver realizados os deveres do Estado neste domínio. No mínimo, o legislador terá que garantir que as pessoas tenham a possibilidade de aceder à habitação própria ou de a conseguir através de contrato de arrendamento.

A propriedade da habitação própria não é, pois, a única via de concretização do direito à habitação, dispondo o legislador ordinário de amplo espaço de liberdade de conformação nesta matéria. O direito à habitação pode ser constitucionalmente garantido de vários modos: permitindo o acesso imediato à propriedade plena do imóvel (v.g. o direito de preferência do arrendatário previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil); através de regimes especiais de acesso à habitação (v.g. o direito real de habitação duradoura, previsto no Decreto-Lei n.º 1/2020, de 9 de janeiro, o regime jurídico das cooperativas de habitação, regulado pelo Decreto-Lei n.º 502/99, de 19 de dezembro, o direito real de habitação, em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada comum, atribuído pela Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio); ou ainda através de normas imperativas de proteção do arrendatário habitacional (maxime, renovação obrigatória, limites à denúncia, à atualização de rendas, etc.). Como se refere no Acórdão n.º 649/99, o direito à habitação «não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão».

Portanto, a Constituição reconhece vários modos de garantir o direito à habitação, sem estabelecer, à partida, preferência de um em detrimento do outro. Ainda assim, admite-se que a posição de proprietário possa, em abstrato, ser considerada mais estável que a de arrendatário e que, em consequência, o legislador, no âmbito da ampla liberdade de definição de políticas sociais, dê primazia a essa via de concretização do direito à habitação. A opção por uma ou outra solução teria sempre, em todo o caso, de passar por aferição do modo como cada uma afeta o direito de propriedade privada do senhorio, à custa do qual se promove o direito à habitação do arrendatário. E tendo em conta, além do mais, que «os titulares passivos do direito à habitação, como direito social, são primacialmente o Estado e as demais coletividades públicas territoriais e não principalmente os proprietários e senhorios» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 837).

O Tribunal Constitucional por diversas vezes entendeu justificadas limitações ao direito de propriedade do senhorio com base na proteção constitucional do direito à habitação do inquilino. A jurisprudência mais abundante incide sobre o arrendamento urbano, considerando-se conformes à Constituição normas que conferem características vinculísticas ao contrato de arrendamento para habitação, designadamente no que se reporta à renovação automática e obrigatória, à livre denúncia pelo senhorio, e às limitações quanto à atualização da contrapartida pelo desfrute do arrendado (Acórdãos n.ºs 425/1987, 131/1992, 151/1992, 311/1993, 4/1996, 263/2000, 420/2000 e 201/2007).

Na ponderação do conflito entre o direito de propriedade e o direito à habitação, o Tribunal formulou a seguinte orientação, no Acórdão n.º 151/1992:

«Mas, fundando-se o direito à habitação na dignidade da pessoa humana (ou seja, naquilo que a pessoa realmente é - um ser livre com direito a viver dignamente), existe, aí, um mínimo que o Estado sempre deve satisfazer. E para isso pode, até, se tal for necessário, impor restrições aos direitos do proprietário privado. Nesta medida, também o direito à habitação vincula os particulares, chamados a serem solidários com o seu semelhante (princípio de solidariedade social); vincula, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir.

É a esta luz que hão de ser avaliadas normas como aquelas que, como já atrás se referiu, subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e o submetem à regra da renovação automática e obrigatória. Nelas, o legislador, conhecendo como conhece, a falta de casas para habitação, sacrifica um direito do senhorio a favor do direito do locatário a dispor de uma casa para sua habitação. De facto, retira àquele o direito que, em princípio, lhe assistiria de denunciar livremente o contrato de arrendamento celebrado - direito este que está compreendido, seja no direito de iniciativa económica privada (artigo 61º, nº 1, da Constituição), seja no direito de propriedade privada (artigo 62º, nº 1, da Constituição)».

 

19. A preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil é atribuída no quadro de um contrato de arrendamento e por conseguinte tem pressuposto que o direito à habitação está constitucionalmente protegido através da forma contratual. Por isso, a venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado não põe em causa o direito à habitação, uma vez que, nos termos do artigo 1057.º do Código Civil, «[o] adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo».

Assim, a compra e venda do imóvel em nada altera a posição contratual do arrendatário relativamente à situação de que beneficiava antes da celebração do negócio. Os requisitos e limites à denúncia do contrato pelo novo senhorio são precisamente os mesmos que vinculavam o anterior senhorio. Por conseguinte, o artigo 1057.º do Código Civil garante que o direito à habitação do arrendatário de parte do prédio que foi alienado é protegido nos mesmos termos em que seria se não tivesse ocorrido tal alienação – nos mesmos termos, portanto, em que qualquer outro arrendatário é protegido. Deste modo, o arrendatário beneficia das disposições que genericamente impõem limites e condições à faculdade de denúncia do contrato de arrendamento por parte do senhorio. Beneficia também, por exemplo, das garantias constantes do Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de agosto, e recentemente alterado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, designadamente nas situações em que o senhorio pretenda realizar obras de remodelação ou restauro do imóvel em que se insere o local arrendado.

Todavia, o facto de o direito à habitação já estar assegurado através do contrato de arrendamento não dispensa a possibilidade do legislador promover a estabilidade da habitação através do acesso à propriedade a quem frui dos bens ao abrigo de um contrato de arrendamento tendencialmente duradouro. A atribuição do direito de preferência ao arrendatário habitacional na venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado, constitui um dos possíveis meios de facilitar o acesso à propriedade de habitação própria.

Nesta dimensão, a proteção da posição do arrendatário também pode envolver o direito constitucional de propriedade, em confronto com a posição do proprietário-senhorio. O artigo 62.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 65.º, n.º 2, alínea c), e n.º 2 da CRP, pode ser interpretado no sentido de abranger o direito do arrendatário a obter propriedade da habitação própria. Não se trata, porém, de um direito da mesma natureza que o direito do senhorio: enquanto a proteção da posição jurídica do senhorio decorre de um direito de propriedade já existente - a garantia da existência de propriedade - a proteção do arrendatário tem por objeto a possibilidade ou expectativa de adquirir a propriedade – direito à aquisição da propriedade. Neste caso, já não está em causa um direito de defesa perante os poderes públicos do Estado, mas «um direito constitucional individual a uma ação positiva do Estado, no sentido de criar e manter em vigor normas de direito patrimonial privado nos termos das quais possam ser constituídos concretas posições jurídicas suscetíveis, por seu turno, de serem abrangidas pela garantia individual da propriedade» (Miguel Nogueira de Brito, ob. cit., pág. 936).     

Por outro lado, no que se refere ao âmbito subjetivo de proteção do direito constitucional de propriedade, ainda se poderia afirmar que o arrendatário, à luz do artigo 62.º da Constituição, também é um proprietário. Com efeito, segundo o entendimento dominante na jurisprudência do Tribunal Constitucional, o conceito constitucional de propriedade é um conceito amplo que abrange, para além da propriedade em sentido civil (o direito real de propriedade), todos os direitos subjetivos de conteúdo patrimonial (Acórdão n.º 491/2002). Nesse sentido alargado, a posição do arrendatário habitacional também poderia ser protegida pela tutela constitucional da propriedade privada, na medida em que esta assegura ao titular do direito a permanência da posição jurídica adquirida com base na lei (Acórdão n.º 267/95).

Simplesmente, o facto de se entender que a posição do arrendatário também poderá ser abrangida pela garantia constitucional da propriedade privada não significa que possa ser sempre invocada em conflito ou colisão com direito de propriedade do senhorio. A posição jurídica que poderia ser protegida pela tutela constitucional da propriedade era apenas a permanência da posição de arrendatário habitacional. O que aí estaria em causa era garantir que o direito de arrendamento persistiria nos termos em que foi validamente constituído. Ora, como se referiu, a preferência na alienação do local arrendado não visa garantir a permanência da situação de arrendatário, mas antes facilitar a aquisição da propriedade desse local. Portanto, a dimensão do direito de propriedade em causa é a faculdade de acesso à propriedade do local arrendado – o direito à propriedade. Nesta perspetiva, o direito à propriedade, no sentido de direito de apropriação, é um direito de carácter social e económico, onde releva a dimensão positiva do direito fundamental enquanto direito a prestações.

Não existe, porém, qualquer restrição legal ao direito de acesso à propriedade. Bem pelo contrário, o que se pretende é conferir ao arrendatário oportunidade de aceder, definitivamente, ao gozo do imóvel, adquirindo a plena propriedade, em antecipação a terceiro. A aquisição da propriedade do “local arrendado”, por força do exercício do direito de preferência, só se justifica enquanto expressão do direito fundamental à habitação. Aqui, o arrendatário é visto como um beneficiário do direito à habitação – um direito económico e social consagrado no artigo 65.º da CRP – e não como titular de um direito de propriedade privada. Por isso, não estão em confronto duas posições jurídicas tuteladas pela garantia constitucional da propriedade, mas a resolução de conflito entre o direito de propriedade do senhorio e o direito à habitação do arrendatário.

É nesta perspetiva que o Tribunal Constitucional tem abundantemente justificado limitações ao direito de propriedade do senhorio com base na proteção constitucional do direito à habitação do inquilino (Acórdãos n.ºs 425/1987, 131/1992, 151/1992, 311/93, 4/1996, 263/2000, 77/2001, 201/2007). A proteção do direito à habitação do arrendatário traduz assim um limite externo ao direito de propriedade do senhorio, só podendo atuar quando devidamente justificada pela vinculação social que recaia sobre a posição deste.

 

20. A possibilidade que assiste ao legislador de restringir o direito de propriedade para proteger a estabilidade na habitação do arrendatário, revelada no artigo 65.º da CRP, não é ilimitada, na medida em que está, desde logo, vinculada pelo princípio da proporcionalidade. Na verdade, estando em causa a legitimidade constitucional de normas que limitam ou restringem direito fundamental, impõe-se a necessidade de avaliar a justificação da sua vigência, bem como o modo e a medida da compressão do direito.

Assim, considera-se que «não é incompatível com a tutela constitucional da propriedade a compressão desse direito, desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade constitucional, que tais limitações ou restrições se afigurem necessárias à prossecução dos outros valores prosseguidos e na medida em que essas limitações se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados» (Acórdão n.º 391/2002). De modo que o princípio da proporcionalidade tem aplicação quando a intervenção do legislador restringe o âmbito de proteção do direito fundamental de propriedade; estando em causa dimensão em que o direito fundamental é de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, a admissibilidade constitucional da restrição tem que ser analisada à luz do regime previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da CRP.

A aplicabilidade do princípio da proporcionalidade mantém-se ainda que as restrições à propriedade sejam impostas pela solução de conflitos com outros direitos, valores ou princípios constitucionais (Acórdãos n.º 254/99 e 723/2004). A admissibilidade de limites resultantes do conflito com outros direitos constitucionalmente garantidos também tem que ser justificada pelos parâmetros da proporcionalidade. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, impõe-se que «tais limites reduzam o âmbito do direito ou direitos atingidos apenas na medida estritamente necessária à superação do conflito» (ob. cit., Vol. I, pág. 389).

 Como é sabido, o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: (i) princípio da adequação ou idoneidade, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); (ii) princípio da exigibilidade, necessidade ou indispensabilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornarem-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; (iii) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adoção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos (Acórdãos n.ºs 187/2001,491/2002 e 159/2007).

Importa ainda ter presente que a aplicação do princípio da proporcionalidade deve basear-se num rigoroso critério de evidência. Ou seja, deve respeitar o espaço de livre conformação legislativa e sobrepor-se a ele, fundamentalmente, em caso de “erro manifesto de apreciação”. Tal ressalta com nitidez do Acórdão n.º 187/2001, quando refere que «em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efetuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do legislador. (…); a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detetar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa».

E posto isto, impõe-se responder diretamente à questão de saber se a norma contida no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil constitui medida legislativa inadequada, indispensável ou desrazoável.

 

21. Vimos acima que tal norma afeta o direito de transmissão da propriedade, no sentido restrito de direito de não ser impedido de alienar o prédio. Nesta dimensão, a norma tem que ser considerada como verdadeira restrição do direito fundamental de propriedade, de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. Estão em jogo dois direitos de natureza diversa – o direito de propriedade e o direito de habitação – em que a proteção deste importa a supressão ou oneração de elementos estruturais daquele.

Para além disso, trata-se de medida legislativa que altera o conteúdo da propriedade para o futuro, mas que também atinge posições jurídicas já existentes. Na medida em que afeta imediatamente posições jurídicas já constituídas – o principal objetivo da Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro –, não pode deixar de ser caracterizada norma restritiva do direito fundamental de propriedade. Como refere Miguel Nogueira de Brito, «as medidas legislativas que dispõem sobre o uso ou o poder de disposição dos bens objeto da propriedade incluem-se nas normas respeitantes à determinação do conteúdo e limites da propriedade, quanto às posições jurídicas ainda não constituídas ou o exercício futuro das posições jurídicas anteriores, devendo, no entanto, ser consideradas como restrições no que diz respeito à afetação imediata das posições jurídicas constituídas ao abrigo do regime anterior» (ob. cit., pág. 990).

Ora, as limitações ou restrições ao direito de propriedade que decorrem do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º, do Código Civil têm que revelar-se meio idóneo, exigível e proporcional para alcançar as finalidades constitucionalmente legítimas de promoção da estabilidade na habitação e impedimento da especulação imobiliária (artigo 65.º da CRP).

Não é isso, no entanto, o que se verifica com o regime especial de preferência estabelecido naquele preceito.

Em primeiro lugar, o direito de preferência não permite ao arrendatário o acesso imediato à propriedade plena do local arrendado. Não podendo incidir sobre o “local arrendado”, porque o prédio não está constituído em propriedade horizontal, a norma determina que o direito de preferir tenha por objeto parte alíquota da propriedade do prédio. O que só por si nos mostra a eliminação da fragilidade própria do acesso ao gozo do imóvel assente na subsistência de relação contratual, mas, por outro lado, a vulnerabilidade da situação em que o preferente fica colocado.

De facto, apesar do arrendatário não ficar privado do “uso exclusivo” do local arrendado, o interesse na estabilidade habitacional deixa de ser tutelado pelas normas imperativas do arrendamento para habitação permanente – designadamente, a regra da prorrogação automática do contrato (artigo 1057.º do Código Civil) –, ficando na dependência da vontade de cada consorte em concretizar a respetiva quota, pondo fim à communio pro indiviso, ou do acordo unânime dos condóminos para disposição ou oneração de parte especificada do prédio. 

É claro que o preferente que adquire quota-parte de coisa comum tem direito – tal como, aliás, os restantes comproprietários – de exigir a divisão da coisa: «nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa» (artigo 1412.º, n.º 1, do Código Civil); «a divisão é feita amigavelmente ou nos termos da lei de processo» (artigo 1413.º, n.º 1), designadamente através da ação de divisão de coisa comum, regulada nos artigos 925.º a 930.º do Código de Processo Civil. No final desta ação, o arrendatário, entretanto tornado comproprietário, poderá tornar-se proprietário de fração autónoma, uma vez que uma das vias de constituição da propriedade horizontal é, precisamente, a ação de divisão de coisa comum, a qual pode ser requerida por qualquer consorte, caso se encontrem reunidos os requisitos exigidos pelo artigo 1415.º. do Código Civil e pelas leis administrativas.

Não é, todavia, seguro que a estabilidade na habitação seja efetivamente protegida pelo exercício do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil. E isto por duas ordens de razão: por um lado, pode não ser possível a divisibilidade em substância e jurídica da coisa comum, tendo em consideração as suas características físico-materiais; por outro, mesmo quando tal seja possível, não está garantido que a parte afeta ao “uso exclusivo” venha a ser adjudicada ao preferente.

A aquisição da propriedade plena da parte especificada do prédio afeta ao “uso exclusivo” do preferente só é possível se estiverem reunidas as condições civis e administrativas para o prédio ser autonomizado juridicamente. Na ação de divisão de coisa comum, a forma especial de dissolução da compropriedade, qualquer dos consortes, sem necessidade do acordo dos demais, pode suscitar a divisibilidade do prédio através da constituição da propriedade horizontal. A constituição ope judicis da propriedade horizontal, determinada na fase declarativa da ação, depende apenas do preenchimento dos requisitos civis e administrativos exigidos para a autonomização das frações. Os relatórios periciais e as informações das autoridades administrativas competentes asseveram se é possível, em face da legislação e regulamentação existente, a constituição do prédio urbano em frações autónomas.

Concluindo-se pela divisibilidade, procede-se à formação de quinhões na proporção da quota de cada comproprietário, e segue-se para a fase executiva de atribuição a cada consorte da parcela que lhe compete, atribuição essa que respeitará eventual acordo dos interessados ou o sorteio que for realizado (artigos 926.º, n.º 5 e 929.º, n.º 1, do CPC). Como é óbvio, não havendo acordo na distribuição paritária das frações, a adjudicação feita por sorteio nunca poderá garantir que o preferente venha a adquirir a fração que habita, cujo “uso exclusivo” foi atribuído na sequência do exercício do direito de preferência. Poderá eventualmente ficar com outra fração no mesmo prédio de permilagem e valor idêntico ao locado, mas como já se verá, para garantir a estabilidade na habitação não era necessário criar uma situação tão incerta como essa.    

Porém, é bem provável que os prédios que nunca foram sujeitos a autonomização jurídica – geralmente edificações centenárias, situadas nos núcleos históricos, sem parqueamento habitacional – não reúnam sequer os requisitos legais de natureza imperativa, especialmente os de ordem administrativa ou urbanística, necessários à constituição da propriedade horizontal. Como se sabe, o modo de constituição de unidades prediais distintas a partir de um único edifício passa necessariamente, no nosso sistema jurídico, pela constituição da propriedade horizontal. A lei civil fixa como requisitos de constituição da propriedade horizontal, sob pena de nulidade do título, que se trate de unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para a parte comum do prédio ou para a via pública (artigo 1415.º). A par destes, existem requisitos administrativos que, decorrendo da verificação das exigências arquitetónicas, de ordem estética e urbanística, de segurança, salubridade, etc., são de satisfação exclusivamente deferida às Câmaras Municipais. A estas entidades cabe sempre, como requisito prévio da constituição da propriedade horizontal, emitir certificado de que o edifício é dotado dos requisitos que o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação exige para o efeito (artigos 62.º a 66.º e 74.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro - RJUE). Ora, se não for demonstrado estarem satisfeitos os pertinentes requisitos administrativos de constituição da realidade jurídica que a ação visa, mediante instrução dos autos com a certificação municipal, o prédio será juridicamente indivisível.

Por outro lado, a divisibilidade que a lei prevê no artigo 925.º do CPC tem que ser de modo a inteirar em espécie todos os interessados, sem que haja lugar a tornas. Como reiteradamente considera a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a indivisibilidade ou a divisibilidade de coisa comum tem ainda de ser aferida em função da quota-parte de cada proprietário, para que os interessados sejam inteirados em espécie, aquando da divisibilidade da coisa, sem que haja lugar a tornas (artigo 929.º do CPC). Assim, se as frações, quer na sua permilagem quer no seu valor, forem muito afastadas das quotas de cada um dos comproprietários, não será possível preencher os quinhões sem o recurso a tornas (dar ou receber tornas). E não sendo possível formar quinhões na proporção da quota de cada comproprietário, de acordo com critérios de razoabilidade, também não pode haver adjudicação por acordo ou por sorteio (Acórdãos do STJ, de 5/11/2002, proc. n.º 02A2594, de 14/10/2004, proc. n.º 04B2961, de 23 de setembro de 2008, proc. n.º 08B2121 e de 15/02/2018, proc. n.º 11337/77, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj).

Ora, nas situações de indivisibilidade – seja por impossibilidade de constituir a propriedade horizontal, seja por impossibilidade de formar quinhões na proporção das quotas – admite-se uma alternativa: acordo dos interessados na adjudicação do prédio a um dos comproprietários, com atribuição de tornas aos demais, ou venda da coisa, com distribuição pelos comproprietários do produto obtido pelos interessados, de acordo com as respetivas quotas (artigo 929.º, n.º 2, do CPC). Como se vê, a única garantia que o preferente tem nesta situação é a partilha do valor do prédio. Na eventual ação de divisão de coisa comum que venha a ser proposta, pode suceder que o imóvel, na sua totalidade, venha a ser vendido, com repartição do respetivo valor pelos consortes, conforme as suas quotas-partes. Nessa hipótese – que tem elevado grau de probabilidade -, não está em causa, como é patente, a proteção do direito à habitação do arrendatário, em nenhuma das suas (possíveis) dimensões. Mas mesmo que se encontrem reunidos os pressupostos para a constituição de propriedade horizontal, a lei não garante que na ação de divisão de coisa comum a fração autónoma correspondente ao local arrendado seja atribuída ao preferente.

Chegamos assim à conclusão, e decerto não podia ser outra, de que a possibilidade da preferência numa quota do prédio não permite alcançar os objetivos que estão na sua base, pois dessa forma o inquilino não acede de imediato à propriedade da habitação, nem se consegue eliminar a eventual especulação imobiliária. Na verdade, a transformação do arrendatário em comproprietário pode criar uma situação de maior instabilidade habitacional, porque a posterior divisão pelos contitulares é operada através de diversos mecanismos cujo acionamento dependerá sempre de concretas circunstâncias, desde logo, da possibilidade de se constituir ou não a propriedade horizontal, da existência ou não de acordo, ou da opção pelo sorteio ou venda a terceiro, com distribuição do respetivo produto. Assim sendo, perde-se pelo menos a especial ligação do arrendatário ao locado, que constituía, em parte, a justificação para que lhe fosse atribuído o direito de preferência em análise. E tanta basta para termos de reconhecer que a norma do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil não é medida capaz de promover a estabilidade na habitação e impedir a especulação imobiliária.

Em segundo lugar – mesmo que se aceitasse prima facie que a medida é adequada e idónea – é evidente a desnecessidade da mesma para promover o acesso do locatário à propriedade da habitação própria. Para garantir a habitação própria do arrendatário não era indispensável que a preferência tivesse por objeto parte alíquota do prédio correspondente à permilagem do locado, ficando a divisibilidade da coisa comum à mercê da verificação de situações futuras e hipotéticas. Se para assegurar a habitação do arrendatário é preciso constituir ope judicis a propriedade horizontal, porque não exigir que o vinculado à preferência fracione o edifício em propriedades distintas antes de o alienar? Nada impede que o proprietário pleno e exclusivo de um edifício habitacional, construído já há muito tempo, constitua o regime de propriedade horizontal sobre esse edifício, para depois alienar separadamente as várias unidades a outros sujeitos. Se faltam requisitos formais para se lavrar o título de propriedade horizontal certamente que tal regime também não poderá será constituído por decisão judicial proferida em processo de divisão de coisa comum.

O Projeto de Lei n.º 846/XIII/3.ª, que esteve na base da Lei n.º 64/2018, de 29 de setembro, consagrava a obrigação de o proprietário constituir a propriedade horizontal, como requisito de venda do imóvel, o que permitia, desde logo, a aquisição da fração autónoma correspondente ao local arrendado. Estando o prédio constituído em propriedade horizontal, com frações autónomas, a preferência poderia incidir sobre a fração arrendada, aliás, em obediência à regra expressa no artigo 1091.º, n.º 1, do Código Civil, que menciona “local arrendado”. Contudo, essa possibilidade não foi acolhida na lei, porventura por se considerar que o prédio poderia não reunir os requisitos formais para a constituição em propriedade horizontal. Mas se for esse o único motivo do abandono daquela hipótese – o procedimento legislativo não revela outro –, também não poderá dizer-se que tal dificuldade é ultrapassada com a aquisição da quota-parte do prédio, correspondente ao locado. Não existindo um regime especial de constituição da propriedade horizontal para o tipo de edificações oneradas com o direito de preferência – prédios antigos que não se encontram em regime de propriedade horizontal –, eventualmente com dispensa de determinados requisitos administrativos, o prédio mantém-se indivisível, situação em que não há qualquer garantia que o preferente possa adquirir o locado. Tal possibilidade só existiria se a preferência abrangesse a totalidade do prédio, o que não é o caso, se o comproprietário preferisse na alienação das quotas dos demais consortes (artigo 1409.º, n.º 1, do Código Civil), ou se os consortes acordassem, na ação de divisão de coisa comum, em adjudicá-lo ao preferente em vez de o vender a terceiros. De qualquer modo, podem ser poucos os arrendatários que têm meios financeiros necessários para se tornarem adquirentes da totalidade do prédio.

Verifica-se, assim, que a aquisição de uma quota-parte ideal do prédio indiviso através do exercício do direito de preferência não é um meio tão eficaz e idóneo para atingir a estabilidade habitacional do arrendatário quanto o da sujeição da alienação à prévia constituição da propriedade horizontal. A subordinação ex lege dos efeitos do negócio projetado à constituição da propriedade horizontal permite que o arrendatário exerça a preferência sobre o “local arrendado” sem provocar prejuízos económicos ao proprietário. A constituição da propriedade horizontal torna possível que o objeto do direito de preferência coincida com o local arrendado e, deste modo, que a preferência seja exercida em paridade de condições com a oferta de terceiro. Com o que logo se dá conta que essa solução é bem menos limitativa dos interesses do proprietário do que a constituição de compropriedade sobre o imóvel. Isto porque a preferência na venda da fração autónoma é exercida “tanto por tanto”, sem qualquer prejuízo para o proprietário, enquanto a alienação forçada de uma quota-parte ideal do prédio não é um contrato idêntico ao concluído com terceiro. O prejuízo que o proprietário pode ter naquela alternativa é o custo da constituição da propriedade horizontal. Mas se é certo que a constituição da propriedade horizontal pode gerar despesas ao proprietário, não é menos certo que as pode repercutir no preço da venda das frações autónomas. Por isso é que, como atrás se disse, a constituição da compropriedade através do exercício da preleção revela-se uma medida mais lesiva dos interesses do proprietário do que a prévia constituição da propriedade horizontal, assim como é menos eficaz na proteção do interesse do arrendatário na estabilidade da sua habitação.

Por último – e é isto o mais importante – a opção pela aquisição da quota-parte do prédio, correspondente ao locado, prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, não salvaguarda o equilíbrio de interesses entre proprietário e arrendatário, entre sujeito passivo e sujeito ativo da relação de preferência. O interesse do proprietário é alienar o prédio em igualdade de condições ajustadas com terceiro; o interesse do arrendatário é adquirir a propriedade do local arrendado, com prioridade sobre terceiro. Só que, nos termos em que a preferência foi estabelecida naquele artigo, o interesse do preferente não pode ser prosseguido sem detrimento do interesse do proprietário, já que a prioridade do preferente não é exercida em rigorosa paridade com as condições negociadas com terceiro, e por isso mesmo o sacrifício que é imposto ao proprietário vai muito além da limitação da liberdade de escolha do contraente.

Não pode, na verdade, deixar de concluir-se que o regime especial de preferência contido no n.º 8 do artigo 1091.º sacrifica excessivamente o direito à livre transmissibilidade do prédio, sem satisfazer o objetivo da estabilidade habitacional. Como vimos, para o proprietário-senhorio, o exercício do direito de preferência traduz-se num duplo limite à livre disponibilidade do bem: está impedido de alienar a totalidade do prédio e, se o arrendatário declarar preferir, está obrigado a vender uma quota ideal do mesmo; e para os demais consortes, tem o efeito de impedir o uso de parte da coisa comum, enquanto não se proceder à divisão ou venda do prédio. Por sua vez, o arrendatário converte-se em comproprietário, sem ter a certeza sobre a possibilidade da coisa comum se dividir em substância, por se verificarem os requisitos da propriedade horizontal, e sem ter quaisquer garantias de que não ação de divisão de coisa comum o local arrendado lhe poderá ser adjudicado.

Significa isto que o resultado obtido não é proporcional à carga coativa que a norma comporta. A preferência causa prejuízos consideráveis ao proprietário e posteriormente aos consortes: não é concedida em condições de igualdade com outrem; sujeita o proprietário a alienar parte alíquota do prédio contra a sua vontade; priva os demais consortes da utilização direta ou aproveitamento imediato de parte da coisa comum. Ou seja, a preferência prevista no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil acaba por desvalorizar a propriedade a que está ligada muito para além do que normalmente ocorre nas demais preferências legais, que apenas limitam a liberdade de escolha do contraente, e por diminuir o uso ou aproveitamento que os demais consortes poderiam ter e retirar da propriedade comum. Ora, estes entraves colocados ao proprietário e aos comproprietários no interesse do arrendatário são excessivos, desrazoáveis e gravosos, na medida em que também se constata que a preferência não permite alcançar os objetivos que estão na base da mesma. Com efeito, o exercício desse direito não permite o acesso imediato à propriedade plena do local arrendado, nem a compropriedade garante a estabilidade na habitação.

Trata-se, pois, de uma intervenção legislativa que, nos seus efeitos restritivos ou lesivos, não se encontra numa relação proporcional ou razoável – de justa medida – com os fins prosseguidos. A ponderação entre a intensidade da intervenção e o peso da sua justificação, o interesse da estabilidade na habitação, tem como resultado que a preferência numa quota-parte do prédio, correspondente ao locado, ultrapassa os limites impostos pela proporcionalidade à determinação do conteúdo e limites do direito de propriedade. Assim, a intervenção na propriedade excede a medida constitucionalmente adequada da vinculação social.

Por tudo o que se conclui que a norma sub juditio, ao limitar desproporcionalmente o direito de propriedade privada do senhorio, viola o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição.

 

22. Os requerentes invocam ainda que a norma da alínea a) do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na parte em que se refere ao critério para o cálculo do valor da contraprestação pecuniária a realizar pelo preferente, viola o direito ao pagamento de justa indemnização, garantido no n.º 2 do artigo 62.º da Constituição.

Já se chegou à conclusão de que a norma sub juditio configura uma violação da garantia da propriedade privada, ínsita no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição. Ora, não se encontrando devidamente justificada a restrição em questão, não se chega sequer a colocar o problema do dever indemnização.

De todo o modo, tendo tal questão sido suscitada expressamente pelos requerentes, sempre se dirá que a mesma não poderia ser colocada por motivo mais relevante: o direito de preferência não constitui privação, ablação ou “expropriação” do objeto do direito de propriedade. O proprietário conserva a liberdade de contratar ou não contratar, apenas está obrigado a dar preferência ao arrendatário na venda se tomar a decisão de contratar. Antes disso, o preferente não tem a faculdade de exigir qualquer preferência, apenas está em condições de exercer o seu direito após o proprietário ter livremente decidido vender ou dar em cumprimento. Só após a decisão de contratar é que ocorrem limitações ou restrições a algumas das liberdades que integram o poder de disposição do proprietário, especialmente a liberdade de escolher o contraente. Porém, a definição normativa desses limites e restrições não transforma a preferência num ato ablativo sujeito a indemnização. Se a determinação desses limites afetar excessivamente o feixe de liberdades que comporta o direito de dispor, o problema é, como vimos, de inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, e não do dever de indemnização. Neste caso, como refere Miguel Nogueira de Brito, «o afetado não pode retirar imediatamente da inconstitucionalidade da lesão do seu direito, a pretensão a uma indemnização por expropriação, nem tão pouco optar entre recorrer aos tribunais para eliminar a lesão do seu direito ou para obter uma indemnização» (ob. cit., pág. 1008).

 

III - Decisão

 

Pelo exposto, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, por violação do n.º 1 do artigo 62.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, da Constituição.

 

Lisboa, 16 de junho de 2020  - Lino Rodrigues Ribeiro – João Pedro Caupers  - Maria de Fátima Mata-Mouros – Mariana Canotilho ( vencida, nos termos da declaração de voto anexa) – Pedro Machete (vencido, conforme a declaração junta)- Fernando Vaz Ventura (vencido, conforme declaração de voto junta).

Tem voto de vencido do Conselheiro Claudio Monteiro, que entretanto cessou funções.

O Relator, nos termos do artigo 15-A do D.L. n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do D.L. n.º 20/2020, de 1 de maio, atesta o voto de conformidade do Conselheiro José António Teles Pereira, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Maria José Rangel de Mesquita, Joana Fernandes Costa, e o Presidente Manuel da Costa Andrade.

Lino Rodrigues Ribeiro

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencidos, pelas seguintes razões essenciais:

1.                  A norma que o Tribunal é agora chamado a apreciar inscreve-se num programa mais vasto de salvaguarda do direito à habitação e tem como objetivo específico conferir efetividade a um direito de preferência já legalmente reconhecido do arrendatário habitacional: a intenção inequívoca do legislador é, na verdade, colocar em situação de igualdade todos os arrendatários no que se refere ao acesso à propriedade da sua habitação em caso de alienação desta pelo respetivo proprietário.

Recorde-se que, relativamente aos arrendatários que habitam locais correspondentes a frações autónomas de prédios constituídos em propriedade horizontal, a lei vigente consagra o direito de preferência na compra das frações. Contudo, aqueles arrendatários que habitam locais integrados num imóvel indiviso, seja por decisão do respetivo proprietário em não proceder à constituição de propriedade horizontal, seja por o imóvel devido à sua configuração específica não cumprir todos os requisitos administrativos da constituição de propriedade horizontal – situação muito frequente em imóveis localizados nos centros históricos das grandes cidades –, ou não tem direito de preferência algum ou somente podem preferir pela totalidade do prédio indiviso. E isto apesar de o respetivo locado satisfazer o seu direito à habitação nos mesmos termos em que tal sucede relativamente aos arrendatários de frações autónomas; e de o arrendamento para habitação corresponder nas duas situações consideradas ao mesmo tipo de relação jurídica com o senhorio. Daí ter o legislador optado, no exercício da sua liberdade de conformação do regime legal vigente, por passar a tratar de forma idêntica situações materialmente semelhantes do ponto de vista do arrendatário.

Tal opção política procurou resolver uma situação que o legislador qualificou como "um enorme desequilíbrio no mercado entre as partes", que "não protege a estabilidade dos contratos de arrendamento e que favorece a especulação imobiliária". Num contexto de alegada "emergência habitacional, principalmente nas cidades com maior pressão imobiliária", o Parlamento entendeu, pela via legislativa, "introduzir elementos urgentes de regulação deste mercado" (Diário da Assembleia da República, I série N.º 81/XIII/3, 5 de maio de 2018, pág. 26-27). Esta posição encontra, aliás, eco na doutrina internacional mais recente, que tem vindo a chamar a atenção para os riscos que a conceção da habitação como um ativo financeiro e não como um bem social comporta para o direito fundamental à habitação, e para a importância da proteção desse direito, também através de medidas legislativas (ver, por todos, Leijten, Ingrid, e Kaisa de Bel. "Facing financialization in the housing sector: A human right to adequate housing for all", in Netherlands Quarterly of Human Rights 38, n.º 2, 2020, pp. 94-114; Pérez, Amalia Balaguer, e Yolanda Gomez Sánchez, El derecho a la vivienda en el derecho constitucional europeo, Thomson Reuters Aranzadi, 2018).

 

2.              Garantindo o pagamento do valor proporcional do locado e a afetação do uso exclusivo desse local (tal como vinha sucedendo até ao momento do exercício da preferência), o legislador, por via de uma propriedade sui generis, cria as condições para que o interesse de quem reside no locado possa prevalecer, salvaguardando a estabilidade e continuidade do direito à habitação, sobre o interesse do proprietário alienante ou do potencial adquirente. A iniciativa e a condução do processo de alienação continuam a pertencer ao proprietário-alienante, que, por isso, também dispõe dos meios jurídico-contratuais, para prevenir as diferentes situações e adequar as soluções em função das variáveis que possam ocorrer. O que não pode é desconsiderar a posição jurídica do(s) arrendatário(s) e o direito à habitação co-envolvido.

Divergimos, por isso, do juízo e fundamentação do presente Acórdão, quanto a vários pontos essenciais.

3.              Em primeiro lugar, cabe notar que o acórdão parte de uma premissa fundamental – a da inadaptação da preferência legalmente criada pela norma questionada aos regimes jurídicos legalmente vigentes da propriedade e da preferência. Essa premissa, que constitui pilar essencial da argumentação expendida, condiciona o juízo de inconstitucionalidade. Ora, a análise jurídico-constitucional há-de partir da Constituição, no caso, da proteção jusconstitucionalmente conferida ao direito de propriedade, confrontando com ela – e não com o regime jurídico resultante do Código Civil – a solução normativa em apreciação. A legislação ordinária –mesmo quando consagra ou regula institutos jurídicos seculares – não constitui parâmetro de validade das opções legislativas, que livremente os podem modificar, afastando-se da sua configuração tradicional.

Aliás, nesta matéria, a jurisprudência e doutrina dominantes têm reconhecido uma ampla margem de atuação do legislador, tendo este Tribunal, em regra, recusado reconhecer as limitações à liberdade de transmissão como uma dimensão do direito de propriedade análoga aos direitos, liberdades e garantias. Além disso, mesmo no âmbito de atuações claramente limitadoras daquele direito, no Acórdão n.º 421/2009 (que, recorde-se, não se pronunciou pela inconstitucionalidade de normas que autorizavam o Governo a legislar no sentido de estatuir instrumentos específicos de política urbanística, designadamente, venda ou arrendamento forçado), o Tribunal Constitucional reiterou a ideia, de que a Constituição permite ao legislador uma ampla liberdade em matéria de conformação e restrições ao direito de propriedade, inclusive no interesse de privados, desde que encontrem cobertura ou justificação  constitucional.

4.         Nestes termos, haveria que levar em consideração – algo que o presente Acórdão não faz – que a intenção do legislador visou proteger um direito fundamental com estatuto jurídico constitucional idêntico ao direito de propriedade: o direito à habitação. Este facto é, aliás, evidente, se atendermos a que o âmbito de aplicação da norma questionada se restringe aos arrendamentos habitacionais. Está, por isso, em causa um conflito de direitos fundamentais de igual valor, cujo peso, na ponderação jurídico-constitucional a efetuar, não poderá deixar de ser equivalente.

5.         Por outro lado, a argumentação da maioria funda-se numa leitura rígida das normas legais, tomando como factos concretas interpretações do regime jurídico criado pela norma em apreço, cuja efetiva aplicação está por demonstrar. Pressupõe-se, por exemplo, que "a prioridade do preferente não é exercida em rigorosa paridade com as condições negociadas com terceiro, e por isso mesmo o sacrifício que é imposto ao proprietário vai muito além da limitação da liberdade de escolha do contraente", desde logo, porque, "se o arrendatário declarar preferir, está obrigado a vender uma quota ideal do mesmo"https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200299_ficheiros/image001.jpg

Além disso, não partilhamos a premissa, fundamental no Acórdão, nos termos da qual não é "seguro que a estabilidade na habitação seja efetivamente protegida pelo exercício do direito de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil. E isto por duas ordens de razão: por um lado, pode não ser possível a divisibilidade em substância e jurídica da coisa comum, tendo em consideração as suas características físico-materiais; por outro, mesmo quando tal seja possível, não está garantido que a parte afeta ao ''uso exclusivo" venha a ser adjudicada ao preferente". Esta ideia supõe uma impossibilidade ou dificuldade inerente à divisão de coisa comum que não se verifica na generalidade dos casos, e não tem eco na jurisprudência dos tribunais comuns, e que é desmentida, desde logo, pelo facto de boa parte dos arrendatários incluídos no âmbito de aplicação do novo direito de preferência habitar partes do prédio em tudo semelhantes a uma fração autónoma. Por outro lado, tal asserção ignora a irradiação para o direito infraconstitucional da solução nova dada pelo legislador ao conflito jusfundamental entre a propriedade e a habitação: mesmo que existissem dificuldades na acomodação jurídica da "nova propriedade do arrendatário" nos quadros pré-existentes da compropriedade, seriam estes a ter de se afeiçoar às exigências decorrentes daquela, de modo a continuarem a assegurar a igualdade de tratamento entre arrendatários preferentes.

6.         Por último, e do ponto de vista da metódica constitucional, a norma jurídica em análise poderia ser classificada como simples intervenção conformadora em matéria de direitos fundamentais, não configurando uma verdadeira restrição. Tal seria, aliás, a conclusão mais provável de uma análise metodológica que se situasse dentro do quadro concetual relativo ao direito constitucional de propriedade que o Tribunal Constitucional tem vindo a adotar até aqui.

A argumentação do presente Acórdão parece constituir um salto – senão mesmo uma viragem – em matéria de jurisprudência sobre direitos económicos socias e culturais, ou, ao menos, no que se refere à propriedade privada (v., em especial, os n.ºs 13, 14 e o início do n.º 21). Consiste em afirmá-los como análogos aos direitos, liberdades e garantias, num universo amplíssimo de situações. Aparentemente, sempre que seja abstratamente aplicável o regime das restrições a direitos fundamentais (ou seja, sempre que haja um conjunto de poderes e faculdades sobre um conjunto de bens indispensáveis ao livre desenvolvimento da personalidade) ou, pelo menos no plano da sua dimensão negativa, de resistência à intervenção do legislador, ainda que a mesma resulte tão somente de escolhas deste último (numa espécie de lógica de defesa de "direitos adquiridos"). A seguir-se este caminho, a coerência jurisprudencial imporá a revisão de algumas das premissas dogmáticas que o Tribunal Constitucional tem adotado relativamente a casos próximos.

Mariana Canotilho – Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura